Carta a uma leitora raivosa

Murakami, candidato ao Nobel, é escritor ruim, bom é o Ernani. Só que eu leio o que ele escreve e a única coisa que …

Murakami, candidato ao Nobel, é escritor ruim, bom é o Ernani. Só que eu leio o que ele escreve e a única coisa que encontro é a repetição de críticas contra escritores de verdade sem que ele mesmo escreva alguma coisa que tenha conteúdo próprio. Só fica na espera do que outros fazem para dizer que é ruim e cagar regra sobre como escrever bem, só que nunca demonstra com exemplos próprios como se faz. É muito recalque e parasitismo. Por linhas tortas a história da pomba deixou claro o que ele faz: só cocô. sóóóóó
Cris Andrade
Cara Cris, obrigado pelo seu comentário. Contra ou a favor, sempre gosto de ver a reação dos leitores. Ao contrário de muitos escritores que conheço, não temo críticas e gosto de discutir. Sei que as discussões não servem pra quase nada, principalmente se são feitas com sangue quente, mas, como disse, gosto de discutir, acho divertido e bom pros miolos, e a temperatura do meu sangue não influi no meu raciocínio. Se vamos esperar a serenidade do eremita no alto de uma montanha, após anos de meditação, poucas pessoas seriam capazes de pensar, concorda?
Não vou comentar ou condenar sua agressividade - pra mim tanto faz. Mesmo que ela não pareça nascer apenas de uma discordância de opinião, não faz diferença, porque aqui o que importa são as opiniões e os argumentos que as sustentam, ou a falta deles. A agressividade é menos que um tempero numa crítica. Uma crítica não é mais correta ou arguta apenas porque é violenta - e no caso de estar errada, fica mais constrangedor pro crítico admitir a pisada na bola. Mas vamos ao que interessa.
Você afirma que eu me considero muito bom pelo fato de considerar o Murakami um escritor bem ruinzinho. Como você deduziu isso? Pela sua lógica, quando eu elogio Borges, Cortázar, Kafka, Stendhal, Stevenson, Conrad, Tchekov, Turguéniev, Trevisan, Cervantes, Graham Greene, Quintana, Anne Tyler e vários outros, devo me considerar um lixo. Você está tirando o foco do objeto de crítica e lançando-o sobre o crítico, o truque mais velho numa polêmica, onde, quase sempre, em vez de se discutir uma obra, se discute o direito do crítico ser crítico. Claro que o recomendável é desacreditar os argumentos do crítico, não o crítico através de sua biografia, ou pretensa biografia.
Olha, Cris, há uma certa distância entre saber ler e saber escrever. Você não precisa saber escrever tão bem quanto Kafka pra apreciar ou criticar os livros dele. Na verdade há muitos bons escritores que são péssimos críticos e há maus ficcionistas que são críticos maravilhosos, vide Edmund Wilson, por exemplo, ou Susan Sontag e Gore Vidal. É que ficção e crítica exigem talentos diferentes, me entende? Não são muitos os casos em que um mesmo escritor tem os dois em alto grau, como Jorge Luis Borges. Droga, sempre o Borges.
Você cita a candidatura do Murakami ao Nobel como prova da minha mediocridade, já que no máximo consegui ser indicado apenas ao Jabuti. Sinto informar que o Nobel, ou qualquer outro prêmio, não prova nada, porque os critérios dos jurados são muito misteriosos. Mas digamos que eu levasse o Nobel muito a sério, não somente a grana envolvida na jogada. Como se explica então que Proust, Joyce, Borges, Greene, Drummond, Clarice Lispector e muitos outros grandes autores não o ganharam? Como se explica que um grupo de professores gaúchos tenha indicado o poeta Luiz de Miranda pra academia sueca? A avaliação da literatura não é ciência exata, mesmo que num livro haja muita coisa objetiva que se pode apontar, se você entende um pouco do que chamam de cozinha ou carpintaria literária.
Você diz que me lê e só encontra crítica a escritores de verdade. Vamos ser sinceros, Cris? Acho que você não me lê, não. Aqui mesmo em minhas colunas você pode encontrar muitos elogios a alguns autores. Nos últimos tempos cantei em prosa e verso Conrad, Cortázar, Borges, Trevisan, Stevenson e Kafka. Você não leu ou não os considera escritores de verdade? Por falar nisso, como você define "escritor de verdade"?
Se você se der ao trabalho de pesquisar, vai encontrar outros elogios rasgados a vários outros autores, alguns inclusive desconhecidos e brasileiros - é, Cris, como não tenho medo de baixar o sarrafo em medalhões, sejam de verdade ou sejam ouro de alquimia, como dizia Cervantes, não tenho medo de elogiar talentos que não ocupam os segundos cadernos da vida. Sempre que topo com talento e inteligência, ou topo com o que me parece talento e inteligência, trato de alardear, porque talento e inteligência fazem um bem danado. Sem eles corremos o risco de atrofiar, não é mesmo? Como acho que o elogio a porcarias faz muito mal, principalmente a leitores iniciantes, leitores que ainda estão formando gosto e opinião.
Talvez você tenha prestado mais atenção a críticas negativas porque falei de autores de que você gosta (ou que lhe impressionam pela fama). Se foi esse o caso, basta você rebater minhas críticas. É fácil, desmonte meus argumentos, prove que estou errado e verá que posso mudar de opinião. Eu sempre me rendo à lógica, precisão e clareza. Como dizia Wells, vivo descobrindo que os outros têm razão. Peguemos o próprio Murakami, embora não transpareça em seu comentário que você o tenha lido, pois se tivesse lido Dance dance dance, por exemplo, ficaria óbvio o que eu disse sobre prolixidade.
Você diz também que eu critico sem ter escrito nada que tenha conteúdo próprio. Trata-se de uma afirmação e tanto. Como tenho vários livros publicados, seria bom que você mencionasse pelo menos um, apontando os exemplos dessa nefasta ausência de conteúdo próprio. Pra lhe poupar trabalho, leia Como o diabo gosta, romance que saiu este ano pela Cosac Naify. Ele trata, digamos de modo esquemático, do desbunde durante os estertores da ditadura, assunto praticamente ignorado pela literatura brasileira. Garanto que meu livro tem uma grande vantagem sobre os livros do Murakami: custa mais barato.
Outra afirmativa interessante é que eu só fico à espera de que outros escritores façam alguma coisa pra eu dizer que é ruim. Acho que de uma certa forma essa frase não faz sentido, já que se pode ler, aqui mesmo em outras colunas, os elogios a muitos autores, de modo que você poderia me atacar pela outra ponta: que fico à espera de que outros escritores façam alguma coisa pra eu dizer que é sensacional. A verdade simples, Cris, é que fico à espera, sempre, do talento e da inteligência dos outros. Minha vida fica mais amena no trato com pessoas talentosas e inteligentes. Sabe, a burrice é uma das coisas que mais cansa. Falar com gente burra é o pior modo de falar sozinho, me parece. Sem contar que a burrice é contagiosa - e não há crucifixo ou réstea de alho que a espante. Apenas o talento e a inteligência de muitos podem nos salvar.
Mas você vai mais longe. Você arremata a afirmativa anterior com o seguinte: "e cagar regra sobre como escrever bem, só que nunca demonstra com exemplos próprios como se faz". Onde eu caguei alguma regra, Cris? Fiquemos no exemplo do Murakami, já que ele é o motivo do seu desabafo. Reclamei da prolixidade dele. Você deve saber - já que dá sinais de se interessar por literatura, ou pelo menos de se interessar pela defesa de alguns autores, o que infelizmente não é a mesma coisa -, não existe um escritor que afirme que ser prolixo é uma virtude. Ao contrário, todos dizem que a síntese e a precisão são a grande meta. Um dos maiores elogios que eu vi foi alguém dizer que Jorge Luis Borges é um cara capaz de botar o universo dentro de uma caixa de fósforo. Mas Murakami enche páginas de papos banais, como numa novela da tevê, sem que esses papos tenham alguma ligação remota com o centro da trama. Achar isso um troço idiota é cagar regra?
Pode-se escrever a mesma coisa de inúmeras formas, sabe-se. Mas também se sabe que umas formas parecem mais eficazes que outras. Agora, acho duvidoso que entre as mais eficazes esteja dizer com cinquenta palavras o que se pode dizer com cinco.
E por que, Cris, eu devo dar exemplos de meus próprios livros pra mostrar que estou certo ao criticar uma obviedade dessas? Se eu começo a usar meus próprios livros como exemplo, sabe o que vai acontecer? Você será a primeira a me chamar de vaidoso. Como minha autocrítica não é construtiva, prefiro quase sempre falar de Borges, Stevenson e Stendhal, minhas bússolas em matéria de clareza, precisão e síntese. Um dos meus poucos orgulhos literários é conhecer meus defeitos melhor que os resenhistas. Mas eles não devem esperar ajuda minha nesse ponto. Eles que cresçam e apareçam, ora. Eles são pagos pra opinar.
Seu arremate era o esperado: "É muito recalque e parasitismo". Um crítico só escapa de ser acusado de recalque se elogiar sempre, quer dizer, ser uma espécie de reencarnação de Hebe Camargo. Mas eu não tenho o menor jeito pra ser Hebe Camargo e acho extremamente prejudicial pra cultura ser Hebe Camargo. Depois, estou me lixando pra acusação de recalque. Não por ela soar à psicologia de almanaque ou de boteco, mas porque ser ou não ser recalcado não melhora nem piora uma crítica. O que piora ou melhora uma crítica é o nível dos argumentos - e chamar um crítico de recalcado nem é argumento, é só um ataque pessoal, uma tentativa óbvia de desacreditar o crítico. Veja, me chamar de recalcado é como me chamar de feio. Não faz a menor diferença na discussão, já que não estamos num concurso de beleza.
Quanto ao parasitismo, é a mesma coisa. Sempre se diz do crítico que, sem a obra criticada, ele não existe. Que a obra move o crítico. E daí? Sem a obra não existe leitor, mas sem leitor a obra existe pra quê? Outro ponto: por que isso de a obra mover o crítico não soa pejorativo quando a crítica é favorável? Mas, Cris, eu nem sou crítico, sou apenas um palpiteiro. Antes de palpiteiro, sou escritor, pelo menos um punhado de livros parece confirmar isso. E esses livros se alimentaram da minha experiência, experiência tanto de vida cotidiana como de leitor. Há alguma novidade nisso? Não que eu saiba. Todos os livros, de todos os autores, bons ou ruins, nasceram assim.
Pra encerrarmos, você diz que só faço merda. Pode ser. Mas me reservo o direito de falar disso depois que você ler pelo menos um dos meus livros e apontar, com bons argumentos e exemplos, o tamanho da dita-cuja.
Agora, cá pra nós, Murakami pode chorar as pitangas. Muitos escritores mais fracos que ele ganharam o Nobel. Desse ponto de vista, ele é um injustiçado.
Sem mais, por ora, me despeço cordialmente.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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