Eduardo Cunha e as laranjas de Hieronimus Bosch

Devo esse título misterioso a Henry Miller, mas a verdade é que nunca li o seu Big Sur e as laranjas de Hieronymus Bosch. …

Devo esse título misterioso a Henry Miller, mas a verdade é que nunca li o seu Big Sur e as laranjas de Hieronymus Bosch. Sonhei por longo tempo na adolescência com as loucuras que deviam estar nessas páginas. Hoje não penso mais nisso, acho que desmamado por outro lindo título dele: O pesadelo com ar-condicionado. Realmente, pesadelo com ar-condicionado é uma ótima definição dos Estados Unidos, sem falar que eu concordo com todo o mal que Miller pensa de sua pátria, mas achei o livro chato pra cachorro. Miller, quando conta histórias, é sensacional. Quando resolve dar uma de pensador, minha nossa.
Devo o resto do texto a um documentário sobre Caio Fernando Abreu. Depois de assisti-lo, me bateu uma saudade dos livros do Caio e então revirei minha biblioteca e não achei nada, nem O Ovo apunhalado e Pedras de Calcutá, acho que roubados, mas não tenho nenhum suspeito. Ou foram perdidos em alguma mudança? Ou estão perdidos entre os outros livros, coisa que acontece com muito mais frequência do que seria razoável? Talvez os duendes os escondam, ou haja túneis do tempo entre as prateleiras, ou fendas no espaço como diria Dick. O certo é que às vezes alguns livros reaparecem onde menos se esperava ou onde se esperava, sim. Mas outros, nunca mais. Temo que os do Caio estejam nessa última categoria.
Bom, cito esses dois especialmente porque foram autografados, ou pelo menos o Pedras - furei a fila, pois a namorada me esperava pra irmos pra Santa Catarina, o que nos coloca perto do feriado de finados no começo da feira do livro de Porto Alegre. Há muito não releio o Pedras, mas ainda lembro de alguns contos com prazer - e, como sempre com Caio, da atmosfera, da fluência impecável. Aí encuquei com O Ovo apunhalado, mas, no máximo, tive um vislumbre da capa da primeira edição, da Globo. É muito pouco, não? Acho que nunca o reli. Suspeito que passei batido, culpa da adolescência, quem sabe.
Pensando nessas coisas, fui pra internet e parei no El País - e fui fisgado por uma matéria sobre uma exposição do Hieronymus Bosch. Claro, daí fui ver imagens dos quadros.
Sempre ouvi aquele papo de que Bosch é uma espécie de surrealista antes que se pensasse em surrealismo. Sei não. Se isso é correto, os contos de fadas também são surrealistas. Ou qualquer mitologia, se vamos falar sério. Porque as imagens pintadas por Bosch são o retrato minucioso das fantasias católicas da idade média.
Isso me levou a pensar no Eduardo Cunha e demais evangélicos. Vamos, me diga: você tem coragem de votar em alguém que vê o mundo como um quadro do Bosch? Corra agora mesmo pra olhar os quadros do velho. São a prova definitiva do quanto essa gente é perigosa.
Dicionário do mau digitador
Honraso. Senador, deputado ou ministro corrupto, com quilos de provas na justiça, bancando o honesto e sendo tratado pela grande imprensa não como o criminoso que é, mas como um líder, às vezes como um patriota. Pensando bem, a palavra também serve pra definir essa grande imprensa e muitos de seus colunistas.
Ediciones de la Flor
Trecho de uma entrevista de Daniel Divinsky, fundador da famosa editora argentina, a Juan Cruz, um dos melhores jornalistas culturais de El País.
P: O que este trabalho lhe ensinou?
R: Que o melhor estudo de mercado é o faro do editor. Para o livro. Existem sempre 2.000 loucos que vão gostar da mesma coisa que você. É preciso trabalhar para eles e não pensar nos 100.000 que você não conhece.
P: E como se virou com os egos dos escritores?
R: Como diz muito bem meu querido amigo Mario Muchnik, "o pior não são os autores": o pior são os agentes literários e os herdeiros dos autores. Têm expectativas que superam as dos autores.
P: E você, como encara o mal do ego do editor?
R: Estou totalmente curado. Há alguns que se consideram partícipes necessários do livro e outros que se dão conta de que são apenas intermediários. Concordo com meu amigo Herralde: o editor não descobre o autor, reconhece sua existência.
P: Este é um trabalho invencível.
R: Até a noite de hoje.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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