Grandes lábios emblemáticos

Tem palavras que entram na moda e se tornam insuportáveis. Não basta a gente se recusar a escrever ou ler textos com elas. Acho …

Tem palavras que entram na moda e se tornam insuportáveis. Não basta a gente se recusar a escrever ou ler textos com elas. Acho que é preciso botar essas vadias no seu lugar. Assim inventei um colunista social que as usa de modo indiscriminado, mas nem tanto, se comparamos com o que se vê nos jornais.
Por exemplo: "Maitê Linhares de Andrade e Silva Tavares compareceu ao Iate Clube este fim de semana com seu cu icônico recém-remodelado por Pitanguy. Arrasou".
Ou: "Maitê Linhares de Andrade e Silva Tavares ostentou seus grandes lábios emblemáticos no desfile beneficente de lingerie das senhoras do Jockey".
Ou: "O bisturi de Pitanguy, a pedido de Maitê Linhares de Andrade e Silva Tavares, extirpou a verruga que ornava a ponta de seu nariz e que um pelo a emponderava como uma cerda".
Ou: "O poderoso empresário Dodô Albuquerque da Silva Tavares, quinto marido de Maitê, após elencar os fios brancos de seu bigode, tornou-os acaju".
Ou: "Em seu discurso na FIESP, em defesa do agronegócio, Dodô Albuquerque da Silva Tavares foi quântico".
Mestre em letras
Sim, principalmente no D e no J. Sabe-se que o J é uma das piores.
Novela, cinema
Ouvi dizer que, devido ao grande sucesso da novela e do filme Os dez mandamentos, vão fazer uma continuação, O décimo primeiro mandamento.
PS: o realismo-mágico é velho como as pedras, ou você acha que Cem anos de Solidão bate a Bíblia?
Deu no Substantivo Plural
Um texto chamado "Nobreza das texturas", de Iwska Isadora, começa assim: "Perguntei o porquê escrevia". Parei aí. Como começar um texto demonstrando que não se tem a menor ideia de quando se usa "o porquê"? Certo, a gramática brasileira tem uma série de idiotismos que poderiam ter sido facilmente varridos por uma das tantas reformas e qualquer escritor com dois neurônios deve fazer o que acha melhor, mas, cá pra nós, porque, por que, o porquê e por quê não são o caso mais misterioso ou patético da última flor do Lácio.
Depois de escrever esse parágrafo, me enchi de coragem e li uns trechos da Iwska - um nome fofo desses é pra gente ficar murmurando no escuro, na cama. Vide um: "nunca fiz tanta questão de me caber em concretos". É como diz um conhecido do Sérgio Fantini, o estilo do Rosa não influenciou ninguém, estuprou. Vide outro: "Choro preso dói. Choro liberto é poesia". Quando o lirismo e a autoajuda se aliam, eu peço meu chapéu.
Sinal dos tempos
Antigamente as socialites sonhavam em ser retratadas pelos pintores da moda, Picasso, Portinari. Hoje elas se contentam em ser fotografas pra revista Caras.
Deu na FS
Letícia Naísa: "Parece que alguma coisa vai dar ruim logo no começo". Incríveis os novos estilistas do jornalismo brasileiro. Parece que alguma coisa vai dar inútil em seguida. Ou vai dar infeliz. Ou vai dar infausto.
Não é um caso isolado. Tenho notado uma total falta de intimidade com as palavras em dezenas de jornalistas e redatores. Não vai dar merda. Já deu.
PS: meu filho me diz que "deu ruim" é expressão que está na moda. Quer dizer, é pior do que eu pensava.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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