O enigma em Pessoa

“Eu tenho ideias e razões, Conheço a cor dos argumentos Mas nunca chego aos corações”. Fernando Pessoa, 1932 Ao escrever estes versos, Fernando Pessoa …

"Eu tenho ideias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
Mas nunca chego aos corações".
Fernando Pessoa, 1932
Ao escrever estes versos, Fernando Pessoa nem de longe imaginava a importância que lhe estava reservada na literatura portuguesa. O multi-poeta morreu cedo, aos 47 anos de idade, em 30 de novembro de 1935, ao ser internado com diagnóstico de cólica hepática. Tudo sugere que ele não alimentava ilusões sobre seu legado, como revela na enigmática frase, que rabiscou um dia antes de falecer:
"Não sei o que o amanhã me trará".
O amanhã chegou bem depois de sua discreta morte, quando Portugal conheceu e reconheceu seu extraordinário legado poético. Por um acaso, os editores se depararam com um baú com mais de 27 mil poemas e textos, que o poeta nunca publicara. A descoberta provocou uma verdadeira comoção nos meios culturais portugueses, levando os críticos a nomeá-lo "o maior poeta português do século".
A dimensão do culto a Fernando Pessoa ficou evidente nas homenagens do cinquentenário de sua morte. Incluindo o solene traslado de seus restos mortais, em 1985, do Cemitério dos Prazeres, para o Mosteiro dos Jerônimos, em Belém. Na cripta deste monumento da mais requintada arquitetura manuelina, repousam reis de Portugal e figuras máximas da lusitanidade, como Luiz de Camões e Vasco da Gama. Uma honra com a qual Fernando Pessoa nunca teria sonhado em sua desolada infância, assinalada por tragédias e adversidades financeiras.
Sua trajetória ascendente começa mais tarde, na África do Sul, quando estuda em colégios ingleses e conhece William Shakespeare, Edgar Allan  Poe e Lord Byron. Autores que deixaram traços permanentes em sua obra. Além de muitos poemas, até mesmo sua última frase foi escrita em inglês.

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Em 1905, o poeta volta a Portugal e ingressa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mas logo abandona os estudos para frequentar círculos literários, livrarias e cafés de Lisboa. Trabalha como guarda-livros e correspondente estrangeiro no Chiado, mas encontra tempo para publicar ensaios, críticas de livros e escrever poesia. Em 1915, quando editor da revista "Orpheu", se integra ao movimento modernista. Conhece então Ofélia Queiroz, com quem mantem relação intensa, instável e tumultuada. E claramente depressiva, como deixa transparecer no poema do heterônimo Álvaro de Campos:
"Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
(?)".
Em 1924, interessado em ocultismo e o misticismo, lança a revista "Athena". Seu primeiro livro, "Mensagem", com poemas sobre grandes vultos da história de Portugal, demarca o início de um período de intensa criação poética, quando concebe uma galeria de alter-egos, heterônimos, pseudônimos, personagens fictícios e poetas mediúnicos que, segundo os biógrafos, chegou ao total de 127 nomes.
O desenvolvimento destes heterônimos ficou como marca registrada e a  face mais original e instigante do poeta. São personalidades, que possuem estilos próprios, com biografias e datas de nascimento e morte. Alguns são bastante conhecidos, como Álvaro de Campos, que assina Tabacaria, dos mais conhecidos e citados poemas da língua portuguesa. Ele é engenheiro, com educação inglesa e sua poesia navega entre simbolismo e futurismo.
O heterônimo Ricardo Reis é um médico que se define como latinista e monárquico. Em protesto à proclamação da República em Portugal, viaja para o Brasil, mas não se conhece detalhes de seu fim.
A Alberto Caeiro é reservado o papel de um camponês místico, que vive     de modestos rendimentos. Porém é considerado um mestre entre os outros heterônimos. Morre cedo, de tuberculose.
Outra figura singular é Bernardo Soares, mais um dublê do que um heterônimo, autor do Livro do Desassossego, considerado uma peça chave na ficção portuguesa moderna. Ele se apresenta como um modesto ajudante de guarda-livros, que, ao encontrar Fernando Pessoa em uma casa de pasto do Chiado, lhe entrega poemas para serem apreciados.

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Porque o poeta multiplicou e multifacetou seu verdadeiro ego em muitos heterônimos? Os biógrafos que tentaram desvendar este universo de identidades e máscaras, percorreram caminhos tortuosos, atalhos, bifurcações e vielas sem saída. Exatamente "como as ruas de Lisboa", na descrição do biógrafo José Paulo Cavalcanti. Ou, ainda, como prefere o crítico Frederico Barbosa - "o grande poeta português foi um enigma em pessoa".
A definição teria lisonjeado o próprio Fernando Pessoa, que, em certos momentos, confessou ser mestre em dissimulação, como nestes versos de 1925:
"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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