A justiça brasileira ou quando as metralhadoras cospem

Lembra de Bugsy Malone, o filme do Alan Parker? Aqui, como de costume, teve acrescentado um subtítulo idiota: Quando as metralhadoras cospem. Sim, uma …

Lembra de Bugsy Malone, o filme do Alan Parker? Aqui, como de costume, teve acrescentado um subtítulo idiota: Quando as metralhadoras cospem. Sim, uma velha história de gangsters nos tempos da Lei Seca, mas uma coisa causa estranhamento: todos os personagens são interpretados por crianças. Daí que o comportamento dos bandidos, que aceitaríamos como normal, aparece como sob lente de aumento e percebemos com clareza o absurdo e a crueldade.
Lembrei disso ao ver se acumularem os detalhes sórdidos da crise política. Até os gringos estranharam. Deu no New York Times: Dilma é um dos poucos políticos que não são acusados de enriquecimento ilícito e é julgada por dezenas de corruptos notórios. Essa inversão, em termos de comédia, parece uma saída muito grosseira, não? Trata-se de um humor nível Renato Aragão, A Praça é Nossa, Escolinha do Professor Raimundo. Difícil partir daí e emparelhar com Shakespeare, Cervantes e Gogol.
Vejamos onde poderia estar a piada. Como um meliante feito o Eduardo Cunha pode presidir um julgamento? Como tanta gente, de tantos partidos, o apoia? Como a grande imprensa abre espaço pra opinião de alguém que devia estar no único lugar acolhedor pra ele, uma prisão de segurança máxima? O fato de Cunha ser religioso não me estranha - há canalhas que nem Deus salva. Mas, confesso, senti um arrepio ao saber que deputados evangélicos oraram por ele.
Falo do Cunha como um símbolo da lepra moral que afeta o Brasil. Mas poderia falar do Paulo Maluf, um corrupto condenado na França e que não pode sair do Brasil porque seria preso pela Interpol. Mas aqui ele não apenas anda solto - anda solto desde os tempos da ditadura, quando teve seu prontuário aberto - como é encarado como uma espécie de entidade folclórica, um Saci ou Curupira. É altamente pitoresco e assim se integrou à paisagem política e criminal. Mas enquanto isso, ele nunca devolveu um tostão do que roubou, foi reeleito e a Justiça o deixa sossegado, afinal está velhinho, seria muito ruim pra ele pegar uma cana. Acho que estão esperando ele morrer pra prender o cadáver. Mas seria bom cravar uma estaca no coração, antes.
Eu poderia falar ainda de outro tipo de escroque, aquele que posa de sábio, prócer ilibado, que paira a uns vinte centímetros do solo, porque nem a lei da gravidade o atinge com a mesma contundência que atinge os zés-manés. Claro, Fernando Henrique Cardoso. Ele teve o descaramento de dizer, numa entrevista à BBC, que no seu governo não houve corrupção porque não saiu nada nos jornais, os mesmos jornais que apoiaram descaradamente a privataria patrocinada por ele ou o pagamento dos votos da reeleição. Ele pensa que o fato de se olhar no espelho e se achar o máximo faz de nós uma tropa de burros.
Não vi a piada, confesso. Nem a piada nem saída. Vejo apenas um país em que os donos do dinheiro elegem mandaletes pra defender seus interesses e criar as leis que os protegem, leis tão bem feitas que eles podem cometer todos os crimes e ainda rir da nossa cara. Antigamente riam apenas entre eles, em seus clubes fechados. Mas agora, como não há mais jeito de disfarçar a patifaria, riem nos palanques, no Supremo, nos jornais, nas tevês.
Me diz uma coisa: você está achando graça?

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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