Colhendo prazeres – II 

                                                …

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                                                               "Quem não percorreu a margem esquerda do Sena,

                                                                 ao longo da Rue Saint-Jacques e Rue des Saints-Péres,

                                                                 conhece pouco sobre a vida humana!"

                                                                                                                                  (Honoré de Balzac)

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Ainda replicando as pegadas de A. J. Liebling pelas ruas de Paris, descobrimos que o moderno flâneur encontra novas descobertas, mas desvendará alguns segredos preservados nos velhos quartiers.
O escritor e jornalista norte-americano seguia a receita de Charles Baudelaire, que apregoava ser a flânerie a gastronomia do olhar. Assim, A. J. Liebling investigava cada fromagerie, boulangerie e patîsserie de seu caminho. E, quando em vez, fazia uma parada em um café de esplanada, para ler Arthur Rimbaud, Paul Verlaine ou Alfred de Musset.

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Seguindo pelo Boulevard Saint-Germain, o flâneur-gourmet chega ao número 115. Ali reconhece a centenária Lipp, onde se sente em casa, apesar de admitir que a casa há muito deixou de ser uma verdadeira brasserie alsacienne para se transformar em atração para curiosos e turistas. O cronista se consola, rememorando as grandes figuras que frequentavam a Lipp em outros tempos.
Como quando Marcel Proust bebia cerveja em sua mesa solitária, na mesma noite em que Antoine de Saint-Exupéry festejava suas aventuras com uma garrafa de Krug. Anos mais tarde, seria a vez de Ernest Hemingway beliscar suas Pommes à l?huile, enquanto escrevia seus relatos de guerra.
O eternamente faminto A. J. Liebling escolhe uma mesa e confere o cardápio. Verifica que um dos pratos mais solicitados ainda é o Pied de Porc Farci Grillé, o preferido de habituais como Simone Signoret, Michèle Morgan, Yves Montand e Charles Trenet. Mas, como ainda é cedo para jantar, prossegue pela rue Bonaparte, continuando ao longo dos Jardins de Luxembourg, até alcançar o Boulevard du Montparnasse. Então, nova pausa para recobrar o fôlego. Na varanda florida do La Closerie des Lilas identifica a mesa onde Ernest Hemingway rascunhou as primeiras páginas de O Sol também se Levanta. E mais adiante, o balcão onde Paul Fort jogava xadrez com Vladimir Ilyich Lenin. Nos anos dourados, ali circulavam personagens como Paul Cézanne, Salvador Dali, Théophile Gautier, Andre Gide e Paul Verlaine. Depois de matar a sede com um copo de Chablis, chega a hora de retomar a caminhada. Ele procura pela vizinhança um petit marché, para escolher alguns temperos ou ostras frescas do Mediterrâneo. Pensa ir até a Rue Mouffetard, no encontro do Quartier Latin com o Jardin des Plantes, mas reconhece que a caminhada é longa. Então, prefere o Marché Couvert Saint-Germain, na rue Lobineau.

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Ali, ele encontra o que procura. Além das lojas de comida coreana vietnamita e indiana, as barracas exibem uma variedade de peixes, crustáceos e carnes de coelho e javali. Vê-se patos, codornas e perdizes, exibidos por inteiro para aguçar o apetite dos passantes. Ao longo das calçadas, o flâneur vai ser atraído por preciosidades dos campos e dos mares da França: Fleur du Sel de Guérande,  Foie Gras do Périgord, frangos de Bresse, trutas da Normandia, embutidos da Alsácia. Uma lista de provocar gourmets. Com o apetite estimulado, após provar amêndoas tostadas e pequenos lagostins empanados, o caminhante se descobre, mais uma vez, faminto. Então, nota um chef de avental branco, escrevendo em uma lousa o menu du jour na porta de um minúsculo bistrot:
Salade de Champignons Sauvages.
Coquilles St Jacques, céleri et blé.
Galette avec Pâte à Blinis.
Sorbet citron sicilien a la maison.
Vins de Pays de Mèditerranèe.

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Bem mais tarde, ainda saboreando mentalmente seu almoço, ele percebe que esqueceu de anotar o endereço do lugar. Lembra vagamente que o petit bistrot estava instalado no porão de um cour não distante da Rue Lobineau. Mas o glutão A. J. Liebling nunca mais voltaria lá. Aquela seria sua última visita a Paris.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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