O enterro

“Rezando, deixo fluir serenamente minha tristeza. Não sei quantas coisas se amontoam em minha solidão”. Ricardo Güiraldes. Ninguém sabia como fazer para enterrar o …

o enterro"Rezando, deixo fluir serenamente minha tristeza.

Não sei quantas coisas

se amontoam em minha solidão".

Ricardo Güiraldes.
Ninguém sabia como fazer para enterrar o coronel com toda a dignidade possível, mas sem causar provocações desnecessárias. O coronel morrera em um tiroteio mal-explicado e o delegado da vila sabiamente recomendou  muita cautela, para não provocar ciumeira nos homens do outro lado. Aqueles eram tempos difíceis, as brigas políticas dividindo famílias ao meio e fazendo de irmãos, inimigos jurados de morte. O capataz Juvêncio coçou a cabeça mais uma vez. Bem sabia que ciumeira de homem era coisa de meter medo até em valente, mas também não era nenhum covarde. Foi então que teve uma ideia de homenagear o coronel morto, mas sem assustar os gansos.

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O dia amanhecera com nuvens escuras correndo pelo céu. Um vento quente - prenúncio de temporal - balançava os eucaliptos que margeavam a estrada do Cemitério das Acácias. Quem escolhera aquele topo de morro para construir o cemitério sabia o que estava fazendo. Cercado por uma cerca de ferro, suas cruzes brancas eram visíveis dos campos ao redor. O coronel morto gostava de um dito dos tempos de revolução -

"As cruzes dos cemitérios servem para lembrar que

ninguém fica prá semente".
Quando as pessoas se reuniram junto à carreta com o caixão do coronel, passava pouco mais do meio-dia, as nuvens escurecendo o céu tal como noite. Os peões chegavam à cavalo, seguidos pelas charretes e carroças com mulheres e crianças. Pesava um silêncio ruim, todos tinham os olhos grudados no caixão de pinho. Alguém estendera sobre o caixão a mesma bandeira que estava pendurada na cabeceira da cama do coronel. Então, o capataz Juvêncio saiu das cocheiras, trazendo a cabresto o cavalo favorito do falecido. O grande malacara fora escovado, seu pelo brilhava e estava encilhado com arreios adornados de arruelas de prata, como se aquele fosse um dia de festa. Um gaiato comentou baixinho que, sem o coronel, o cavalo não parecia ser de verdade.
O pequeno cortejo atravessou o campo, até o caminho que levava  ao morro do cemitério. Eram mais de duas léguas de distância, mas, mesmo os que caminhavam, não reclamavam do cansaço. Pairava uma luz mortiça de começo de inverno e, já de longe, se enxergava as lápides brancas enfileiradas. O cortejo subiu em silêncio, as rodas de madeira rangindo aqui e ali, um soluço abafado. Logo atrás da carreta com o caixão do coronel, o cavalo malacara troteava inquieto, bufando e forçando o cabresto das mãos do Juvêncio.

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Quem estava no cortejo daquele dia, lembraria, muito tempo depois, que aquela subida do morro fora muy sofrida, a lembrança do falecido pesando nos passos dos homens, mulheres e dos cavalos.
Por fim, o cortejo chega ao cemitério, as pessoas descem das carroças e entram no campo santo. Juvêncio amarra o malacara no portão enferrujado e agarra uma alça do caixão. Os demais carregadores eram ex-companheiros do coronel, que usavam um  lenço preto, no lugar dos lenços coloridos das antigas jornadas.
A cerimônia foi curta, o padre da vila, nervoso, fez as orações em voz sumida que poucos ouviram, pois o vento ficava mais forte e o céu mais escuro e ameaçador. Quando a última pá de terra caiu sobre o caixão, todos se retiraram de cabeça baixa, parecendo aliviados. Mas Juvêncio ficou mais um pouco por ali, de pé diante do monte de terra e da cruz de ferro que mandara fazer com as iniciais do morto.
Quando chegou ao portão, uma surpresa o aguardava. O malacara havia sumido, deixando no chão um pedaço de cabresto arrebentado, ainda com as argolas de prata. Juvêncio olhou para um lado e outro - as pessoas se dispersavam morro abaixo, o céu cada vez mais carregado. Longe, no campo aberto, fez-se ouvir um trovão forte. Então, Juvêncio soube, que nunca mais veria o cavalo do coronel.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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