Ode ao velho bistrot

"O bistrot existe com um único objetivo ? nos fazer felizes à mesa”. Julia Child, "Minha Vida na França". *** Michel Bosshard é garção, …


"O bistrot existe com um único objetivo -
nos fazer felizes à mesa".
Julia Child, "Minha Vida na França".

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Michel Bosshard é garção, chef e proprietário do Le Quincy, um pequeno bistrot que fica em uma rua sem saída, no sudoeste da periferia de Paris. Da estação de metro mais próxima, leva-se uns 20 minutos de caminhada e não existem placas indicativas na rodovia que vem do centro de Paris. Mas Monsieur Bosshard não se queixa do isolamento. Seu bistrot está há 30 anos no mesmo lugar e suas oito mesas costumam lotar no almoço e no jantar. O garção, chef e proprietário garante que a caminhada faz bem a seus clientes, pois eles chegam sedentos e com muita fome.

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Monsieur Guénard é o que chamaria um chef de quartier. Ele vai todas as manhãs até a feira na praça e, no caminho de volta, avisa os vizinhos qual o menu du jour. Às vezes, o carteiro faz uma parada para um petit rouge e "esquece" sobre o balcão, cartas para moradores que não estavam em casa.
No entanto, como outros cozinheiros de sua geração, Michel Bosshard sabe que os velhos bistrots e brasseries estão morrendo. Nos últimos anos, a França, a pátria da gastronomia, assiste a profundas mudanças nos hábitos alimentares dos consumidores. Crises econômicas, o empobrecimento da classe média e a presença das minorias étnicas alteraram o perfil demográfico europeu e francês.
O viajante que frequentava tradicionais bistrots e brasseries da Paris de 20 anos atrás terá dificuldades em encontrar endereços com aquela atmosfera caseira, informal e aconchegante. Em Saint-Germain-du-Prés, tradicionais restaurantes de boulevares fecharam as portas, pressionados pela alta dos aluguéis, cedendo lugar a lojas de grandes griffes.
Nos anos 90, já pressentindo as mudanças, o venerado chef Paul Bocuse abriu brasseries a preço fixo, o que causou resmungos nos puristas da haute cuisine. Agora, muitas das casas estreladas do Michelin simplificam cardápios, procurando reduzir custos sem perder seus valiosos clientes. Um sintoma da crise atual é a Bistronomia, um movimento que surgiu com o objetivo de preservar a cozinha caseira e camponesa, oferecida em ambientes familiares e informais. Este grupo de jovens empresários e chefs, de Paris e Bruxelas combate a comida pausterizada das redes de lanchonetes e defendem que o bistrot é um valor cultural e hábito insubstituível no modo de vida francês. Quem confirma é um dos líderes, o chef Sébastien Guénard, do Miroir, em Montmartre:
"Recebo os clientes como se viessem jantar em minha casa."
E acrescenta que parisienses tem prioridade:
"Sempre tenho duas ou mais mesas reservadas para os clientes do quartier, mesmo que haja uma fila de turistas na porta",

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Não tão jovem como seus colegas do Bistronomia, Louis Gauthier, herdou o Le Quincy, uma tradicional brasserie do 12éme arrondissement. Seu pai era um açougueiro da região de Corréze, que se orgulhava de servir os melhores filés de Paris. Quem entra pela porta do Le Quincy vive a impressão de estar na Paris de 1940. Os clientes elogiam a comida, mas M. Gauthier sabe que eles são os mesmos há muitos anos, enquanto as lanchonetes do outro lado da praça estão lotadas de jovens e turistas.
Mesmo assim, reluta em modernizar a velha brasserie. O ponto alto de seu cardápio são as tenras (e caras) carnes de Corréze e exige que as toalhas e guardanapos xadrez vermelho-e-branco sejam do melhor tecido, com o nome Le Quincy bordado em relevo.
A casa não reconhece cartões de crédito e os cheques são olhados com suspeita. Por outro lado, os habituais costumam pagar as contas no final de cada mês. Modernizar o menu e seguir os modismos? O veterano chef, em seu longo avental branco e gravata borboleta vermelha, sacode a cabeça e mostra a lousa, ilustrando sua fé na cozinha do Le Quincy:
Les escargots à l?ail
Foie d?oie au foie gras
Cuisses de grenouilles
Blanquette de veau
Le lapin dans le vin blanc et les échalotes
Tarte aux poireaux.
E seu rosto se ilumina, ao descrever as terrines da brasserie:
"A terrine-aux-feu é feita com pescoço de porco, fígado de galinha, ovos frescos e banhada em cognac. É servida com salada de repolho e vinagrete de mostarda de alho".

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O jornalista David Lebovitz, que mora em Paris e escreve em jornais dos Estados Unidos, é outro defensor da bistromania. Ele relata que já pediu Coca-Cola para acompanhar um guisado de cordeiro, sem que o garção o expulsasse da casa. Em outra ocasião, comentou com o chef do A La Biche au Bois que gostaria terminar o jantar com uma Tarte mousse au chocolat. O chef fez uma careta, mas pediu um tempo. Cinco minutos depois, o garção entrava pela porta com uma generosa fatia de torta de mousse de chocolate. Trazida do bistrot do outro lado da praça.

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A fala do veterano Louis Gauthier soa como um réquiem para os dias de glória dos bistrots:
"Os rebanhos de linhagem estão diminuindo e a carne, cada vez mais cara. Quando eu servir o último filet mignon de Corréze, será o fim do meu bistrot".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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