Saqueando o tesouro da juventude 2

Aconselhado pelo meu amigo Mário Goulart e seduzido pela facilidade com que ganho mais uma coluna, sigo saqueando minha peça, ou seja lá o …

Aconselhado pelo meu amigo Mário Goulart e seduzido pela facilidade com que ganho mais uma coluna, sigo saqueando minha peça, ou seja lá o que for, Tesouro da juventude ou Durma-se com um barulho desses. Se alguém pensa estabelecer relação entre os fragmentos, esqueça - a ideia era uma espécie de almanaque. O humor, nota-se, também é meio nível almanaque. E. S.
Palco escuro. Relâmpagos, trovões. Chove desatinadamente. Das sombras do fundo, vem um vampiro de guarda-chuva. Na boca do palco, para e monologa, triste e monótono.
VAMPIRO - Vocês notaram a maldade dos motoristas nos dias de chuva? São capazes de entrar na contramão pra passar nas poças e nos molhar. Alguns nem olham depois, outros olham e praguejam se nos molharam pouco ou riem se molharam bastante. Os piores fazem aquele gesto acompanhado do indefectível: iééé! Acho que alguns anotam num caderninho a proeza, com a hora, a esquina e outros detalhes, quem sabe pra recordar nas longas noites de inverno.
De onde vem a maldade dos motoristas nos dias de chuva? Sim, claro, eles não são santinhos nos dias de sol. Muito escolar é atropelado no sinal fechado como cachorros que cruzaram a rua na hora errada. Quase todas as horas são erradas para os motoristas e as multas são perseguições claras, mas nos dias de chuva eles não agem apenas como os donos das ruas, eles se divertem.
Pensei que fosse o carro. Porque um homem num carro, mesmo que seja um Fusca do tempo da guerra, se acha superior a você, pedestre ignaro. Mas, como disse, nos dias de chuva eles precisam esfregar em nosso nariz essa superioridade. Não sei por que o fato de estarem secos faz tanta diferença.
Quem nos salvará da maldade dos motoristas nos dias de chuva? O capitalismo incentiva a maldade dos motoristas nos dias de chuva oferecendo melhores carros e melhores chuvas. O socialismo propõe acabar com os carros, fora para a elite burocrática, e manter as chuvas apenas nas regiões agrícolas. O que vocês acham?
Cristo e Buda não nos salvaram da maldade dos motoristas nos dias de chuva. Achavam melhor a gente se secar quietinho.
Longa pausa.
Parece que nem um cursinho de boas maneiras nos salvará da maldade dos motoristas nos dias de chuva.
Muito lentamente, o vampiro se vira e some na chuva.

oOo
Palco iluminado. Entram Júlia e Ivan como se andassem na rua. Buscam um orelhão.
IVAN - Pode duvidar, queridinha, mas o número é esse mesmo. Não precisa nem ficha, basta discar e estamos falando direto com Deus.
JÚLIA - Então é a cobrar. E se Ele não aceitar a ligação?
IVAN- Mulher sem fé.
JÚLIA - Como você conseguiu o número?
IVAN - Ora, tenho minhas fontes no Vaticano.
JÚLIA - Sei, o porteiro do teu prédio conhece um sujeito que conhece um primo de um coroinha e?
IVAN - Tou com o número ou não tou?
JÚLIA - Tou tão nervosa!
IVAN - Calma, calma. (Disca um número interminável) Tá chamando. Alô?
VOZ EM OFF (três vozes ao mesmo tempo) - Pronto. Alô. Está lá.
IVAN - De onde fala?
VOZ EM OFF - Céu. Paraíso. Além Tejo.
IVAN (pra Júlia) - Péssima ligação. Parece até que tem um português na linha. Deve ter chovido muito pelo Purgatório. (Ao telefone) Quem tá falando?
VOZ EM OFF - Deus Pai. Filho. (Com sotaque português:) Espírito Santo.
IVAN - Como? Não ouço direito.
VOZ EM OFF (jogral) - A Santíssima Trindade, porra!
IVAN (seco) - Quero falar com Deus pai.
VOZ EM OFF (jogral) - Quem quer falar com ele? Tem hora marcada?
IVAN - Diga que é o Ivan. O Ivazinho, filho da dona Cláudia.
Passa Ninfa correndo atrás do Sátiro. Ela com menos roupa que na cena anterior.
VOZ EM OFF - Deus Pai na linha.
IVAN - Oi, como vai?
VOZ EM OFF - Bem, tchê.
IVAN (pra Júlia) - Deus não é brasileiro. É gaúcho.
VOZ EM OFF - E aí, como vai?
IVAN - Se levando.
VOZ EM OFF - E a dona Cláudia? Melhor do reumatismo?
IVAN - Mais ou menos. Mas? tou telefonando pra perguntar uma coisinha.
VOZ EM OFF - Sei. Como todos, você vem me encher o saco com o significado da vida. Olha, cansei. Vou dizer de uma vez, aí você espalha e talvez acomodem o pito. É o seguinte:
IVAN - Não, não. Eu só quero saber o que é bom pra tosse.
VOZ EM OFF (hesita) - Xarope, acho.
IVAN - Mas tem de ser com mel e agrião?
VOZ EM OFF - Sei lá. Peça informação nas boas casas do ramo. Era só?
IVAN - Tinha uma coisa sobre o Brasileirão, mas deixa pra lá.
JÚLIA - Deixa eu falar um pouquinho.
IVAN - Olha, Deus, tem uma amiga aqui que?
VOZ EM OFF - É gostosa? Passa logo.
JÚLIA (emocionada) - Ai, meu Deus. Como vai o Senhor?
VOZ EM OFF - Divino, como diria o Zezinho.
JÚLIA - Sabe, Deus, tenho uma grande curiosidade. Eu queria? Nem sei se fica bem perguntar, mas? Eu queria? Ai, fico toda encabulada! (Toma fôlego e coragem) É verdade que o senhor é gordo?
VOZ EM OFF - É. Mas começo o regime segunda-feira.
JÚLIA - Bem, Senhor, era isso. Não quero tomar o Seu tempo.
VOZ EM OFF - Ora, tenho a eternidade pela frente.
JÚLIA - Tchau. Um abraço pra Santa Terezinha.
VOZ EM OFF - Tchau. Um beijo.
JÚLIA - Outro. (Desliga sonhadora) Ai, ai?

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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