Saqueando o tesouro da juventude

Resolvi examinar umas pastas velhas e botar fora essas coisas que se acumulam em pastas velhas. Entre documentos inúteis e recortes de jornais que …

Resolvi examinar umas pastas velhas e botar fora essas coisas que se acumulam em pastas velhas. Entre documentos inúteis e recortes de jornais que nunca serão relidos, encontrei um original chamado Tesouro da juventude ou Durma-se com um barulho desses. Não sei se dá pra chamar de peça teatral. Está mais pra um espetáculo tipo vaudevile. Pelo que pude averiguar, escrevi o Tesouro com trinta anos, ou um pouco menos, mas seu humor é muito, muito mais jovem. Em alguns momentos, eu diria constrangedoramente mais jovem. Agora, achei a ideia interessante.
É mais ou menos assim: no fundo do palco, a sombra de uma máquina de execução, inspirada certamente pela máquina de A colônia penal e a ditadura em que vivíamos. A execução do condenado acontece durante toda a peça, ele sendo entrevistado por um repórter televisivo de tanto em tanto. As declarações do condenado são um amontoado de lugares-comuns e elogios à marca de relógio que cronometra sua morte, ao lubrificante usado na máquina e ao fabricante dela, que também vende armas.
Enquanto isso um casal, Ivan e Júlia, estão a uma mesa de bar ou andando pelo palco nas mais variadas situações e discussões, que se pretendem debochadas. A ação do casal é interrompida às vezes por um disco voador que pousa no centro do palco (o marciano sai do disco e faz alguma coisa engraçada ou absurda). Ou é interrompida por uma ninfa seminua que cruza o palco correndo com um sátiro atrás. Ou, ainda, é interrompida pela entrada do Homem da Metralhadora (não se sabe se é policial ou bandido) que mata todo mundo em cena, embora os mortos se levantem depois e a coisa continue. Como diz Júlia: "Credo, parece a Bíblia: sexo, violência e morto ressuscitando".
Abaixo transcrevo o começo e uns trechinhos pra mostrar o nível de demência da coisa.
Tesouro da juventude ou Durma-se com um barulho desses
Esta peça não é dedicada à Beti.
PERSONAGENS
Não tem. Haverá apenas estereótipos, caricaturas ridículas. Duas pessoas divertidas: Ivan e Júlia. Depois: um Marciano, uma Ninfa e um Sátiro, um Condenado à Morte, um Vampiro, um Homem da Metralhadora, um Repórter, três Freiras de Minissaia e os que esqueci.
ÉPOCA
Um dia antes do fim do mundo. Quer dizer, hoje.
CENÁRIO
Um bar que é uma cidade que é um cemitério que é um armário que é um depósito de lixo ou apenas um palco vazio ou qualquer coisa, menos um bordel. Se o diretor insistir com o bordel vai dar processo.
FIGURINO
Os atores podem se vestir dos modos mais absurdos, como de terno e gravata. Vale tudo, menos palhaço. Palhaço e bordel, convenhamos, meu nego.
Palco escuro.
VOZ EM OFF - No começo, era o caos. Depois, continuou o caos. No fim - que remédio! - permanecerá o caos.
Luz em resistência. Neblina vai se desfazendo pouco a pouco. Baixa no meio do palco um disco voador com aquele barulhinho de aspirador de pó, muito lento, num fulgor azul-elétrico. A porta do disco se abre e depois de um pouco de suspense sai o Marciano. Usa uma espécie de capa plástica brilhante. Vai até a boca do palco. A cara dele vai ficando perversa. De repente, ele abre a capa e mostra um pau enorme, todo verde, com antenas em que piscam luzinhas coloridas. Fecha a capa e a cara. Volta calmamente pro disco e vai para o espaço.
Tempo.
No fundo do palco, ainda em meio à neblina, se vê a sombra da máquina de execução. Será sempre assim: uma sombra ao fundo do palco. A máquina: estrado com correntes para prender pulsos e tornozelos; no alto, uma plataforma cheia de dentes. A plataforma irá descendo lentamente sobre o condenado, com alguns rangidos, durante o tempo todo.
Vultos de guardas e um padre trazendo o condenado, que é preso na máquina. Um dos guardas, com gestos teatrais, desdobra um papel e lê a sentença.

oOo
Entra Ivan, senta a uma mesa, de costas para a máquina de execução. Bebe uma cerveja. Um rádio é ligado, procura-se uma estação, ouve-se uma música. Entra Júlia apressada.
JÚLIA - Sabia da última? O mundo vai acabar!
IVAN (dramático) - Garçom, a saideira!

oOo
Passa correndo ninfa seminua perseguida por sátiro.

oOo
REPÓRTER - Estamos com o prisioneiro de número 577XF896/221, que foi condenado à morte pelo juiz doutor Oceano Atlântico Linhares, detentor do recorde latino-americano de penas de morte, que recentemente teve uma dessas mortes premiadas na Tailândia, onde se realizou o Festival Dura Lex, Sed Lex, que contou com a presença do Esquadrão da Morte, secção Baixada Fluminense, entre os jurados.

oOo
Ivan entra por um lado do palco, vestindo uma longa capa preta e segurando uma gadanha. Júlia entra pelo outro lado, de biquíni e botas. Se encaram a certa distância. Entra juiz e vê se nenhum dos lutadores tem alguma arma secreta. Chama os dois para o centro do palco. Dá instruções. Enquanto isso se anuncia a luta.
VOZ EM OFF - Atenção, senhores e senhoras, atenção! Chegamos enfim à tão aguardada luta, a última do card principal. Durante quinze sensacionais rounds, teremos esses dois pesos pesados na eterna revanche entre Eros e Thanatos. Eles se baterão com a fúria dos deuses, até que um deles peça penico. À nossa esquerda, pesando 130 quilos, Eros, o Furacão do Caribe! (Júlia levanta os braços saudando o público) À nossa direita, pesando 150 quilos, Thanatos, o Colosso de Ébano! (Ivan saúda o público com a gadanha)
Soa o gongo. Juiz dá a largada. Eros e Thanatos não se mexem.
EROS - Feio!
THANATOS - Boba!
EROS - Eu vou contar pra mãe que você me chamou de boba!
THANATOS - Foi você que começou.
EROS - Você tava inticando comigo.
Gongo. Intervalo. Gongo. Recomeça a luta.
THANATOS - Eu vou te quebrar a cara.
EROS - Quebra nada.
THANATOS - Ói que eu quebro.
EROS - Experimente, se você é homem.
THANATOS - Mulherzinha.
EROS - Broxa.
Gongo. Intervalo. Gongo. Recomeça a luta.
EROS - Eu te atiro uma minhoca na cabeça.
THANATOS - E eu um sapo.
EROS - E eu uma lesma.
THANATOS - Eu uma barata.
EROS - E eu uma mosca.
THANATOS - Mosca não dói, tralalalá.
Gongo. Intervalo. Gongo. Recomeça a luta.
THANATOS - Tua mãe é puta.
EROS - A tua, que é mais perua.
THANATOS - Não bota a mãe no meio.
EROS - Eu boto no meio da tua.
Raivoso, Thanatos vai até Eros e a acerta no queixo. Eros cai duro. Juiz conta até dez. Dá luta por encerrada, levanta punho de Thanatos, que saúda a plateia. Desinteressado, juiz tira um livro do bolso e começa a ler enquanto sai do palco.
EROS (pra Thanatos) - Prevalecido!

oOo
REPÓRTER - O que você acha da pena de morte?
CONDENADO - Um espetáculo pra pessoas de nervos de aço, como eu.
REPÓRTER - O que você sente sabendo que daqui a uma hora esses dentes penetrarão em tua carne, transformando você num guisado sangrento?
CONDENADO - Não tenho palavras pra expressar a profunda emoção que sinto. Gostaria apenas de agradecer aos amigos e familiares que sempre me incentivaram.
REPÓRTER - Essas foram as palavras do prisioneiro 577XF896/221. Logo após os comerciais, voltamos com os últimos lançamentos do costureiro paraguaio Conchita "Bambalabamba" García y García, La Aguja de Oro.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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