Crônicas do limbo

              "E de tudo fica um pouco. Oh, abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau …

 
Citizen-Kane
 
 
 
 
 
 
"E de tudo fica um pouco.
Oh, abre os vidros de loção
e abafa o insuportável
mau cheiro da memória".
Carlos Drummond de Andrade.
Em sua incessante busca do tempo perdido, Marcel Proust escreveu sobre a inutilidade das tentativas de recuperar algo que ficou em nosso passado. Quando procuramos transformar nosso presente em algo suportável, buscamos refúgio em antigos momentos, cultuando objetos desde muito desaparecidos. Proust nos lembra que paraísos perdidos no tempo existem apenas em nós mesmos.

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Quando crianças, temos o hábito de nos afeiçoar a certos objetos ou brinquedos, que, ao longo da vida, conservamos como ícones da felicidade infantil que ficou para trás. Minha irmã cultivava uma boneca de pano e ficou desconsolada quando ela desapareceu. Do meu lado, perdi um caminhãozinho vermelho de lata e bolinhas de gude coloridas, que guardava em um saquinho debaixo do travesseiro. Então crescemos, o tempo passa e substituímos os brinquedos perdidos por objetos de estimação, mais apropriados ao universo dos adultos. Mas os vestígios da infância continuam em algum lugar no limbo, se recusando a desaparecer.
Recordo de um colega de ginásio que gostava de falar de sua meninice. Dizia que tivera um brinquedo especial, um patinete que fora esquecido em um caminhão de mudança. Eu o reencontro, muito mais tarde, com a vida feita, casado e feliz pai de gêmeos. Fomos tomar uns goles e, nem sei porque, conto do filme que vira e cujo final me causara funda impressão - quando Orson Welles, como o cidadão Kane, recorda de um trenó perdido na infância e balbucia seu nome, "Rosebud". No mesmo instante, meu amigo levanta, começa a soluçar e vai embora, sem dizer adeus.

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Meu tio Armando passava o tempo cuidando das roseiras em sua   casa, ao lado da Igreja de Santa Terezinha. Ele era um homem tranquilo, de pouca conversa, mas quando abria a boca, fazia um bem danado ouvir sua voz calma e pausada. Parecia ter a sabedoria das pessoas que estavam em dia com a vida. Ao ouvir minhas lamúrias de alguma coisa que eu perdera, pousou a tesoura de podar e disse:
"- Estás vendo estas rosas? Foi preciso paciência e dedicação,até o dia, e hora de vê-las desabrochar? Mas não duram muito - basta um vento forte,uma geada e lá se vão. Quando gostamos de alguma coisa é preciso saber que vamos perdê-la".
Sorriu e voltou para suas rosas vermelhas. Demorei para entender o que ele queria dizer. Depois me dei conta que todas as pessoas carregam um acervo de desaparecimentos. Objetos, cenários e pessoas que fazem parte de nossos sonhos - ou talvez, pesadelos. Em meus vestígios afetivos restou pouca coisa, uma figueira em nosso quintal, a moça de tranças louras da Ramiro Barcelos, o velho Vergílio e suas garrafinhas de leite. Mais a silhueta da torre da igreja, enfeitada pelas lâmpadas coloridas da Festa do Divino. Outros fragmentos já se desvaneceram, como o cheiro de lenha verde no fogão e o perfume de jasmim-manga no jardim de Dona Berta. E ainda pergunto a mim mesmo para onde foram os vasos de samambaias pendentes nos cachê-pots de porcelana e os tristes panôs na parede da cozinha que diziam "Esta Casa é um Lar"?
O poeta Mário Quintana se perguntava onde estavam as pessoas sentadas em cadeiras nas calçadas de Porto Alegre. Ou as mulheres que se debruçavam em almofadas nas janelas da Cidade Baixa, olhando as pessoas na rua.
Na verdade - dizia - elas olhavam o tempo passar.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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