Alô, alô, marciano, aqui quem fala é da terra

Juro que vi e revi várias vezes o vídeo em que a Brigada Militar (BM) usa de violência inaceitável e inexplicável na desocupação do …

Juro que vi e revi várias vezes o vídeo em que a Brigada Militar (BM) usa de violência inaceitável e inexplicável na desocupação do prédio da Secretaria da Fazenda (Sefaz), na quarta-feira da semana passada. Juro que vi e revi inúmeras vezes, driblando a ânsia de vômito que o material provoca, o vídeo em que a BM, na ação comandada por um certo capitão Trajano, utiliza de arbitrariedade, abuso de poder e truculência na desocupação do prédio público situado na Avenida Mauá. Juro que vi e revi diversas vezes o jornalista Matheus Chaparini, do jornal Já, identificando-se como profissional de imprensa, antes de ser preso em pleno exercício da profissão.
Por isso, não sei se estou vivendo no mesmo planeta, território, país, estado e cidade habitada pelo governador José Ivo Sartori e seu secretário de segurança, WantuirJacini. Pasmada, acompanhei na terça-feira, declarações estapafúrdias e desencontradas de Sartori e Jacini sobre os episódios lamentáveis ocorridos no prédio da Sefaz. Não queria retomar o assunto uma semana depois, mas não dá para deixar passar em branco o desencontro de informações entre os dois representantes do Governo do Estado e um certo descaso com a inteligência de quem viu o vídeo em que o jornalista diz que é jornalista e está ali no local trabalhando.
O governador, que se elegeu pelo partido do Rio Grande, se esqueceu que o mesmo vídeo, onde ele não viu o repórter Chaparini identificando-se diante do comandante da ação, foi visto por todo o Rio Grande. Não existe outro vídeo, senhor governador, é só um. Nele, Chaparini, que pode sim ser um cidadão e um militante nas suas horas de folga, insiste mais de uma vez que está cobrindo a ação. Mesmo assim, tem seu celular retirado (posteriormente devolvido) e é informado pelo capitão que por se tratar de imprensa deveria estar lá fora junto com os demais profissionais da mídia. Mas então, expliquem-me, como ele sabia tratar-se de alguém da imprensa.
Depois de quase uma semana sem declaração nenhuma do governador, do secretário de segurança e do secretário de comunicação, que ignorou solenemente a prisão de um jornalista, era melhor que Sartori e Jacinipermanecessem no silêncio. Mas não. O governador resolveu dizer que o jornalista só se identificou quando foi levado para a Delegacia de Polícia (desmentido pelo capitão conforme parágrafo acima), que o caso do jornalista não envolve um profissional de imprensa e sim um militante. Como assim? Só porque Chaparini tem no seu perfil nas redes sociais algumas imagens participando de manifestações? Quando é que ele deixou de ser jornalista?
Para tornar o caso ainda mais rumoroso, o secretário de segurança confessou que até a manhã de terça-feira ainda não havia assistido o vídeo em que Chaparini identifica-se como jornalista. O que é isto? Quase uma semana depois, Jacini ainda não encontrou um tempo para ver o vídeo em que a BM arrebenta, prende, amassa, bate, arrasta, taca spray de pimenta dentro da boca de estudantes sentados no chão do prédio da Sefaz, que não destruíram nada, não demoliram nada, não incendiaram nada. Apenas estavam ali ocupando um prédio público por não concordarem com o acordo feito com o Governo do Estado para a desocupação das escolas.
Perguntas que não querem calar. O governador viu o mesmo vídeo que todos os outros? O secretário de segurança não teve 10 minutos para olhar o vídeo? Como é possível que a assessoria de Jacini não lhe oriente a não ir para uma entrevista coletiva sem ter conhecimento dos fatos? Desde quando jornalista não pode ser um cidadão, um militante nas horas de folga? Desde quando o jornalista tem que estar do lado de fora dos acontecimentos? Como ele pode cobrir com imparcialidade e isenção sem ver as ocorrências?  Porque o secretário de segurança, após finalmente saber que havia tal vídeo com a identificação do repórter informou que não irá acompanhar o tema? Se o jornalista fosse funcionário da grande mídia teria o mesmo tratamento? As estudantes presas não mereciam, pelo menos, serem arrastadas e destratadas por brigadianas?
Triste liberdade de imprensa mais uma vez ameaçada. Desrespeito total com um jornalista no exercício da sua profissão. Afronta sem precedentes com os estudantes na desocupação do prédio. Desconsideração da BM com a questão de gênero ao não dispor de policiais femininas para tratar com as jovens. Truculência sem limites na ação empreendida pela BM. Sem falar nos marcianos aqui da Terra.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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