Dois Fernandos

  Um grande santo e um grande poeta. Os dois nasceram em Lisboa e compartilham do mesmo pré-nome, Fernando. E ambos têm em comum …

 
santo antonio
Um grande santo e um grande poeta. Os dois nasceram em Lisboa e compartilham do mesmo pré-nome, Fernando. E ambos têm em comum uma mesma data de calendário: 13 de junho. Neste dia, no ano de 1231, Fernando Martins, também conhecido como Santo Antônio, morreu em Pádua, na Itália. E, exatamente 657 anos mais tarde, nasceria em Lisboa o poeta Fernando Pessoa.

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As biografias dos dois célebres lisboetas são bem conhecidas - o santo nasceu junto à Sé de Lisboa, quando recebeu o nome de batismo de Fernando Martins. Mais tarde, quando estudava no convento franciscano de Coimbra, recebe a notícia do martírio de colegas missionários, na África. Abalado, adota o nome de António e decide ir para o deserto de Marrocos.
A partir deste ponto, as lendas dominam a biografia do franciscano Antonio. Diz-se que o navio que o levaria à África enfrentou uma violenta tempestade, encalhando nas costas do norte da Itália. Ele viaja para Pádua, onde conhece São Francisco de Assis. Em pouco tempo, a eloquência de suas pregações e seus atos de santidade são populares em toda a Itália.
Morre em um convento das Clarissas, em Pádua, e é canonizado um ano depois pelo papa Gregório IX. Foi sepultado em uma basílica de Lisboa, construída em seu louvor. Em 1946, é proclamado Doutor da Igreja, uma honra que, quando vivo, certamente recusaria.
Um paradoxo - embora seu culto esteja entranhado na alma portuguesa, não tem o título de padroeiro de Lisboa, que historicamente pertence a um estrangeiro, São Vicente, mártir espanhol do século III. O que não impediu que a devoção a Santo António tenha ultrapassado os cânones da liturgia católica, alcançando uma dimensão quase pagã. É venerado como um ente milagreiro de grandes e pequenas causas e sempre presente nas tradicionais festas de junho. Na mitologia camponesa e aldeã, é parte do cotidiano da casa, uma figura folgazã e um agente casamenteiro, em muito diferente da devoção que lhe é prestada na Itália.

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O outro lisboeta, Fernando António Nogueira Pessôa, nasceu em um edifício neoclássico do bairro do Chiado, diante da ópera de Lisboa, a 13 de junho de 1888, no dia dedicado a Santo António. Também ele viajou para a África, com mãe, que casara em segundas núpcias com o cônsul de Portugal em Durban.
O futuro poeta foi estudante aplicado, que estudou inglês, para ler William Shakespeare no original. Mas os encantos da língua materna prevaleceram e ele volta a Lisboa, com a pretensão de ser o Luis de Camões dos novos tempos. Um escritor compulsivo, que criou uma legião de alter egos, como o bucólico Alberto Caeiro, o clássico Ricardo Reis e o cosmopolita Álvaro de Campos. Fernando Pessoa morreu quase anonimamente, mas não guardava dúvidas que seria famoso. Em vista das coincidências numéricas, pode ser apontado como o Santo António da poesia lusitana. Com a glória de estar sepultado em um monumento nacional, o Mosteiro dos Jerônimos, onde também repousa o ídolo de sua juventude, Luis Vaz de Camões.

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Após a morte do poeta, seus inventariantes encontraram uma arca contendo cerca de 25 mil páginas, com textos avulsos e poemas inéditos. Entre eles, alguns escritos em seus últimos dias. Como estas linhas, que soam como um típico necrológio pessoniano:

"Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,

E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.

A minha vida passada misturou-se com a futura,

E houve no meio um ruído do salão de fumo,

Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez."

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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