Precisamos falar ainda sobre tantos assuntos

Mãe nunca dorme um sono profundo e tranquilo enquanto seus filhos e filhas não retornam das baladas nas madrugadas frias ou intensas de calor …

Mãe nunca dorme um sono profundo e tranquilo enquanto seus filhos e filhas não retornam das baladas nas madrugadas frias ou intensas de calor e avisam que está tudo bem. Esta é a deixa para penetrar, enfim, num sono reparador e até experimentar sonhos promissores. E cada uma tem a combinação já acertada previamente com o seu filho ou filha de como deverá agir para sossegar a mãe no meio da madrugada. No meu caso, o acerto é de que minha filha, com 21 anos, deve sim me acordar, independente da hora de sua volta e me dizer que está tudo ok. Se decidir dormir na casa de alguém por qualquer motivo, deve mandar torpedo ou Whatsapp para me acalmar.
Em comum com outras mães, estas criaturas que geram vidas para o mundo carregam dores e presságios inexplicáveis. Só mesmo uma mãe percebe se algo de estranho aconteceu com seus rebentos ao simples toque dos passos dos pés no chão. Só mesmo uma mãe compreende a dor escondida no olhar cabisbaixo de um filho ou filha ao piscar automático das pálpebras. Só mesmo uma mãe entende os altos e baixos dos momentos diários de seus filhos e filhas apenas a observar o som e o ofegar da respiração.
São ligações internas e dramáticas que as mães têm com seus filhos e filhas que atravessam gerações e desafiam todos os notórios saberes. Nesta minha história de 21 anos e seis meses de mãe de filha única, sem contar os nove meses de gestação, entendo que a melhor explicação/definição para este amor intrínseco, arraigado e enraizado encontra-se no pensamento da poetisa e tradutora Alice Ruiz. Segundo ela, depois que um corpo comporta outro corpo, nenhum coração suporta o pouco.
Esta coluna deveria tratar do caso abominável do estupro coletivo que sofreu uma menor de 16 anos na zona oeste do Rio de Janeiro na semana passada e que comoveu o país inteiro. Deveria escrever sobre o fato de que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil e alertar que este número é bem maior porque nem todas as mulheres abusadas denunciam. Fala-se que mais de meio milhão de mulheres por ano, no Brasil, tenham sofrido algum tipo de violência sexual. Ou quase um abuso por minuto. É um dado impressionante.
O estupro coletivo da menor, que só foi denunciado porque um vídeo da menina nua e desacordada foi postado nas redes sociais, reacendeu o debate sobre as inúmeras e constantes violências, de todos os tipos, sofridas pelas mulheres no Brasil. E reforçou que mais do que nunca, precisamos ainda falar sobre tantos assuntos. Sobre a legislação que, embora tenha avançado muito, ainda apresenta falhas que impedem a amedrontam as denúncias. Sobre a cultura do estupro que precisa ser eliminada. Sobre o incentivo da publicidade na exploração do corpo feminino. Sobre a linguagem midiática que auxilia na perpetuação da discriminação e da misoginia.
Como mãe, no entanto, não consigo deixar de pensar na dor da mãe da menor que sofreu o estupro coletivo. Imagino a vontade da mãe de abraçar a menina e num toque de mágica tirar toda aquela sujeita do seu corpo. Suponho a mãe acarinhando a filha depois do depoimento pungente na Polícia e querendo que tudo aquilo nunca tivesse acontecido. Penso na mãe passando a mão nos cabelos da menina de modo a alisá-los e assim confortar a sua pequena, como tantas vezes deve ter feito em outras ocasiões. Visualizo a mente da mãe com seus pensamentos confusos a se questionar porque fizeram tamanha crueldade com a sua menina.
Sei que a dor maior é da menina. Sei que o coração dela está estraçalhado. Sei que seu corpo carregará pela vida cicatrizes e marcas indesejadas. Sei que a vida dela nunca mais será a mesma. Sei que o útero não está doendo, como ela afirmou, mas sim a alma, por existirem pessoas cruéis sendo impunes. Sei que ela está sendo julgada erroneamente por estar naquele local. Sei que ela jamais se esquecerá de tudo aquilo. Mas tenho pensando muito na mãe da menor violentada. Nas noites insones desta mãe. No coração em chamas desta mãe. Nos sentimentos mistos e incompreendidos de revolta e raiva. Nas emoções mescladas de carinho e afetos. Na dor da mãe. No coração, que para toda a vida, estará batendo em outro coração.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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