Um drinque em Veneza

                                                …

José

                                                                                                                                                                         "É sempre importante sonhar.

Faça um brinde a si mesmo e vá em

busca de seus melhores sonhos."

(Giuseppe Cipriani)
Confesso que fiquei meio decepcionado. Afinal, aquele era o Harry?s Bar, o mais famoso bar de Veneza, instalado no Hotel Cipriani, ponto de encontro de grandes personalidades do passado. Suas suítes, com varandas debruçadas sobre o Grande Canal, ostentam os nomes de seus frequentadores célebres - Sarah Bernhardt, Noel Coward, Somerset Maughan, Charlie Chaplin, Orson Welles. Não recordo o que exatamente esperava encontrar no Harry?s - afrescos renascentistas no teto ou candelabros de cristal Murano?

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Não encontrei nada disso. Aquele é um bar afirmativo e masculino, um refúgio discreto e seguro, onde quem faz a atmosfera são os clientes. Fica quase escondido atrás de uma fachada de pedras antigas, não longe da Piazza San Marco. No mesmo endereço desde 1931, quando abriu suas portas para se transformar em um lugar obrigatório para quem ia a Veneza para ver e ser visto.
Giuseppe Cipriani trabalhou como garçom em bares e hotéis na França, Bélgica e finalmente em Veneza, no Hotel Mônaco, a apenas a alguns metros do velho depósito de cordas, que um dia seria o bar que ele sempre sonhou ter.
O Harry?s Bar abriu em maio de 1931 e foi um sucesso imediato entre os intelectuais e globetrotters que frequentavam os palácios do Grand Canal. Em suas memórias, Cipriani faz inconfidências: em um certo dia de 1935, precisou auxiliar os garçons a servir cocktails e antipasti em mesas ocupadas por figuras como o rei Alfonso XIII da Espanha, Rainha Guilhermina da Holanda, Phillipe de Rothschild, Aristóteles Onassis, Arturo Toscanini e Peggy Guggenheim.

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Mas nem todos os hóspedes possuíam o mesmo refinamento. Em 1943, os fascistas requisitaram o salão para atender as tripulações dos navios de guerra e Cipriani foi obrigado a colocar na entrada um cartaz que alertava: "Judeus não são benvindos". Algum tempo depois, o aviso foi discretamente transferido para a porta de serviço. E sumiu de vez, em abril de 1945, quando chegaram as tropas aliadas. Giuseppe Cipriani lembra do encontro com o comandante norte-americano, que andava   em busca de um verdadeiro Dry Martini. Naquele mesmo dia, as portas do Harry?s Bar foram reabertas, celebrando a libertação de Veneza, mas ninguém registrou quantos drinques foram servidos.
No gelado inverno de 1949-50, um outro conquistador chegou ao Harry?s. Era Ernest Hemingway, que passava uma temporada na ilha de Torcello. Ele se instalou em uma mesa de canto no bar, onde ficava horas inteiras, escrevendo em seu bloco de notas. Em um de seus contos, Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores, os personagens conversam em uma das mesas do Harry?s Bar.

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Fui até o fundo do bar e me acomodei em uma das banquetas de couro.  O pedido não podia ser outro - um Bellini, o cocktail que ajudou a fazer a fama do lugar. Dizem as lendas que, no após-guerra, o Bellini disputava com o Bloody Mary do Hotel Ritz de Paris, o título do melhor cocktail da Europa. Lentamente, sorvi aquela misteriosa alquimia do Signore Cipriani, enquanto pensava nas gerações de viajantes, aventureiros, escritores, estrelas do cinema e milionários que se acotovelaram naquele mesmo balcão.
Pedi mais um Bellini, enquanto tentava identificar a mesa preferida por Arturo Toscanini e aquela onde Hemingway escrevia seus contos. Mas o segundo Bellini já não trazia o mesmo encantamento do primeiro.
O salão se esvaziava e o bartender parecia cansado e com sono. Paguei a conta e fui encerrar a noite em uma tratoria da Calle Ridotto, diante de um Fegato alla veneziana e uma garrafa de vino da tavola.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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