Bar, doce bar

"O que importa na vida não é o que aconteceu, mas como você lembra". Gabriel García Marquez. Os lugares onde fomos felizes são mais …


"O que importa na vida não é o que aconteceu, mas como você lembra".
Gabriel García Marquez.
Os lugares onde fomos felizes são mais fáceis de descrever, mas quase impossíveis de localizar. Tanto poderia ser a praça onde brincamos na infância, como um bar onde alimentamos nossos vagos sonhos de adolescência. A praça e o bar já não existem, mas ainda sobrevivem em uma esquina qualquer nos vestígios do tempo. O poeta escreveu que carregamos conosco alguma   coisa dos lugares onde estivemos. Mas que também sempre deixamos algo de nós por onde passamos.

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Lembro de gente solitária, que afirmava ter passado a maior parte da vida em bares e botequins. Me fascina ouvir estas memórias carregadas de nostalgia e povoadas por sonhos jamais alcançados. Eles descrevem os tons caramelados dos lambris enfumaçados de um antigo restaurante, como quem lembra os tons pastéis de uma tela de Cézanne.
Também recordam o bar onde o balcão estava polido por milhares de cotovelos, enquanto saboreiam (mais uma vez) o gosto ardido da mostarda dos sanduiches de pão preto, o frescor da cerveja bock, as confidências divididas com o homem do outro lado do balcão. Feliz - ou infelizmente, não disponho de uma memória tão aguçada como a de meus velhos amigos. Nem mesmo recordo onde ficava aquele bar alemão, onde eram desfrutávamos das melhores almôndegas de Porto Alegre. Mas os grandes botequins são assim mesmo - sua localização é guardada apenas na memória afetiva de cada um de nós.

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Mas nem mesmo com a ajuda de antigos parceiros de mesa e de copo, seríamos capaz de retornar a endereços que a memória cristalizou como refúgios seguros das agruras da vida. No Rio de Janeiro dos anos 60, existiu um autêntico pub inglês. Ficava na fronteira entre Ipanema e Leblon, mas fechou as portas na véspera de um Natal nos anos 90. O Lord Jim era uma escala obrigatória dos marinheiros dos navios britânicos em manobras no Atlântico Sul. Eles sabiam honrar as tradições dos homens do mar - bebiam galões de cerveja preta, devoravam o estoque das Sheperds" Pie e terminavam a noite dançando em cima das mesas. Por mais de 60 anos, gerações de apreciadores de comida de bistrot cultivaram um clássico na gastronomia de São Paulo. O Le Casserole permanece como um dos últimos refúgios onde se pratica a velha e boa cuisine française. Antigos frequentadores construiram a mítica do lugar, como a lenda que o marché de fleurs defronte foi instalado apenas para prover charme parisiense aos clientes das mesas de janela. Ou a estória de que os lambris de madeira das paredes nunca mais foram encerados, depois de terem encantado o chef Paul Bocuse, em um memorável jantar de 1990, na companhia do casal fundador Roger e Fortunée Henry.

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Um veterano publicitário de Madison Avenue, que escreveu sobre a afluência da imigração irlandesa na Costa Leste americana, conta que, em 1880, haviam mais irlandeses em New York do que em Dublin. Habituados ao trabalho duro, eles se sentiram em casa nas forças policiais, no corpo de bombeiros e nas docas do porto.
E foram acolhidos em dezenas de pubs e tavernas, abertos no Bronx e no Brooklyn, onde matavam a fome com apimentados guisados de carne de ovelha e a sede com a forte cerveja preta importada de Dublin. Alguns ainda sobrevivem, servindo a quarta geração de irlandeses-americanos a mesma cerveja preta e os mesmos guisados de ovelha. Consta como o mais antigo o Old Town, que se orgulha de fabricar sua própria cerveja, desde que abriu as portas, em 1892. Com o passar do tempo, foi adotado por executivos de terno-e-gravata da vizinha Madison Avenue. Parece que seguem os passos do famoso personagem que teria descoberto o lugar: David Ogilvy, que era visto, no final dos anos 60, fumando seu cachimbo junto ao balcão e rabiscando em um bloco de notas. As lendas vão além, garantindo que ali foi criada    a clássica campanha das camisas Hathaway.

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A mítica destes refúgios já foi cantada em verso e prosa. Anúncios icônicos e grandes romances foram escritos em seus balcões ou nas mesas de canto. Uma novela de detetive que se preza não pode dispensar uma cena em um bar enfumaçado e frequentado por tipos suspeitos. E, como sentenciou o mestre Raymond Chandler em "The Long Goodbye":
"O primeiro drinque da noite em um bar tranquilo - não conheço nada igual".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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