Na carpintaria do diabo

Imagino que muitos escritores, uma hora ou outra, tiveram de decidir se escreviam em primeira ou terceira pessoa um conto, novela ou romance. Não …

Imagino que muitos escritores, uma hora ou outra, tiveram de decidir se escreviam em primeira ou terceira pessoa um conto, novela ou romance. Não digo todos porque nunca tive de decidir e acho bem provável que haja outros do meu tipo. Sabe o que é? Quando uma história se apresenta, se apresenta formatada, digamos - conteúdo e forma são indissociáveis. Mal examino aquela nebulosa inicial - porque é isso, uma nebulosa que irá se concretizando à medida que escrevo -, sei que deve ser escrita em primeira ou terceira pessoa. Como sei, não sei, mas garanto: a coisa é evidente.
Sempre ouvi que é mais fácil escrever em primeira pessoa, mas não me lembro de ter ouvido os argumentos que deveriam provar a afirmação. Me parece que é o contrário. A primeira pessoa exige que você conheça muito bem o personagem e saiba falar com as palavras dele. Ou mais: você tem de incorporar o personagem, ser o cavalo como se diz na umbanda. Sem isso, você pode facilmente ser mais você e menos ele.
Um bom exemplo é Vladimir Nabokov: Lolita e Fogo pálido. O leitor precisa ser um idiota chapado pra confundir o autor com os narradores desses romances e pra não perceber o quanto de eficácia os textos perderiam na terceira pessoa. Nem vamos falar no virtuosismo técnico de Nabokov.
Um exemplo diferente pode ser Salinger e seu O apanhador no campo de centeio. O romance pode não ter absolutamente nada de autobiográfico, em termos de fatos, mas temos a sensação de que o garoto pensa e sente como Salinger. Se fosse narrado na terceira pessoa, o personagem continuaria a ser exatamente o mesmo, mas o livro talvez perdesse em impacto. É duvidoso que em terceira pessoa nos sentíssemos íntimos daquela irascibilidade profunda.
No caso da terceira pessoa, você não é, você fala sobre alguém. Por mais que você se sinta misturado com o personagem, por mais que você narre apenas o que esse personagem sabe e sente, que ele seja o filtro do que é dito, há uma distância. Isso dá uma sensação de maior objetividade. Mas, confesso, não sei pra que serve exatamente essa sensação, já que duvido da existência da objetividade, fora talvez de um campo que abrange uns vinte por cento. Pra completar, gosto da dubiedade de narradores como Humbert Humbert ou Zeno, que nos confundem com suas mentiras, fantasias, exageros.
Meu exemplo preferido do uso da terceira pessoa é Julio Cortázar em muitos de seus contos. Ele narra tão colado ao personagem que depois, na memória, temos a sensação de que era tudo na primeira pessoa. Isso não acontece apenas comigo. Em alguma entrevista, Cortázar comenta que uma amiga o criticou por escrever sempre na primeira pessoa. Ele disse que isso não era verdade e abriu um livro pra provar. Concluíram que no caso dele a terceira acabava funcionando como primeira.
Eu não sou um bom exemplo, mas me dei conta de que quase tudo o que escrevi em terceira pessoa teve um motivo simples: eu não conseguia olhar de dentro do personagem. Era exatamente o contrário, sempre um filmezinho em que eu via o fulano fazendo isso ou aquilo e praticamente tinha de adivinhar o que ele sentia. Acho que os bons leitores se dão conta disso. Agora, apenas pra correr o risco, algumas vezes, quando conhecia intimamente o personagem, escrevi em terceira pra ver se conseguia aquele efeito Cortázar, como em muitos capítulos do Como o diabo gosta ou no conto "O anjo exterminador", de Corvos na chuva.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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