URUBUS E SANGUE ? LITERATURA SOB MAU TEMPO

CORVO DO POE ? Antes de mais nada, duas explicações. Primeira: como é que você, um velho escriba, com barbas mais brancas que as …

CORVO DO POE - Antes de mais nada, duas explicações. Primeira: como é que você, um velho escriba, com barbas mais brancas que as do Papai Noel, publica por uma editora chamada Jovens Escribas?
ERNANI SSÓ - Peguei mau tempo pelo caminho, me atrasei horrores. Segunda?
CP - No conto "Corvos na chuva", que dá título ao livro, só há urubus, os chamados urubus-da-cabeça-preta. Corvo sou eu.
ES - Deixe de frescura, todo mundo chama urubu de corvo por aqui, está até nos dicionários. Depois, corvo, no contexto do conto, soa melhor.
CP - O livro se chama Corvos na chuva porque é o melhor título ou o melhor conto?
ES - Acho que é o melhor conto e o melhor título. Foi meu único texto que o crítico Paulo Hecker Filho, o mais durão destas plagas, leu e não sugeriu nada. Mas me deu uma ordem: não mude uma vírgula.
CP - Você obedeceu?
ES - Não. Mudei duas vírgulas e um ponto, se não me engano.
CP - É verdade que você levou uns vinte e cinco anos pra escrever esse conto?
ES - Entre a ideia e a execução, sim. A escrita mesmo foi a maior barbada, umas duas ou três horas, em duas sentadas, com um compromisso entre elas. Parecia cópia de um ditado.
CP - O livro tem quinze contos. Por que tão poucos?
ES - Desde o começo, me dediquei à arte de escrever contos e depois jogá-los no lixo. Mas, como você pode ver, não cheguei à perfeição.
CP - E esses quinze sobraram por quê? Cansaço, vaidade?
ES - Veja: eu escrevo um texto qualquer, depois mexo horrores, boto na gaveta e trato de esquecer. Um belo dia eu o releio. Se não sinto vergonha ou não me irrito, não jogo fora.
CP - É científico, como se vê.
ES - Um conto meu pode ser ruim por falta de talento, nunca por desleixo.
CP - Você pede ajuda aos amigos?
ES - Claro. Muitos contos foram jogados fora ou estão no limbo por sugestão deles.
CP - Alguma exceção?
ES - Duas. Nenhum amigo se impressionou com "O anjo exterminador". Um até me disse: apenas teu texto sustenta aquilo. "Aquilo", imagina. Mas algo nele me amolece. Mesmo assim, decidi jogar fora. Então uma amiga me disse: não faça isso. Ela, como eu, tinha encontrado o anjo exterminador numa rua vazia, de madrugada, numa cidadezinha do interior, e acha que a gente deve guardar um momento desses, se se lembra. Talvez possa servir pra outro adolescente, noutra cidadezinha, noutra madrugada.
CP - Tomara que os resenhistas tenham visto o anjo também. Bom, você disse duas exceções.
ES - A segunda é pelo outro lado: eu queria jogar fora o conto "Nana, nenê" e um amigo, acho que o Mário Goulart ou o Sérgio Fantini - eles são meus oráculos -, me disse que não. Trata-se de um texto cubista, me entende? Frente e verso vistos num mesmo plano - o passado, o presente e as fantasias lado a lado, sem distinção, numa colagem dos infernos. Antes de escrever, esse experimentalismo todo me parecia muito difícil. Aí, depois que terminei o conto, notei que se trata apenas de mais um mecanismo e perdi o interesse. Só o apliquei de leve em outro conto, "O sono do assassino", porque a situação exigia.
CP - É mais fácil escrever coisas experimentais?
ES - Não. Mas é mais fácil tapear com experimentalismo - você deslumbra o leitor com uma série de babados formais e o cara nem percebe que você está dizendo as cretinices de sempre.
CP - O "Nana, nenê" é difícil de ler?
ES - Menos do que assistir a"O ano passado em Marienbad. Às vezes acontece isso, um escritor tem de apostar o último tostão numa carta e o leitor que se vire, depois. De qualquer forma, pelo menos uma vez por semana, me arrependo de não tê-lo despachado.
CP - Já que o Hecker leu, pode dizer o que ele disse?
ES - Que manjo de velhice. O legal é que escrevi o conto aos 25 ou 26 anos.
CP - Nem uma palavra sobre o experimentalismo?
ES - Ele não se impressionava, já tinha visto de tudo. Mas se não gostasse, ai, ai, ai, ai.
CP - Você trabalhou em asilo ou clínica geriátrica?
ES - Foi mais simples, vampirizei a vovó de uma namorada. Fiquei dois anos de olho nela.
CP - Como você tem saudades do Hecker, como ele parece continuar sendo teu interlocutor apesar da imprudência de morrer cedo, me diz: ele gostava de outros contos além do "Corvos na chuva"?
ES - Sim, vários, mas tinha um carinho especial por "O rei da sanfona", que considerava uma espécie de êxtase adolescente.
CP - Aquele sobre iniciação sexual e que não é autobiográfico.
ES - É uma brincadeira com um amigo que teve aulas de sanfona.
CP - É verdade que o Hecker achava você melhor contista que romancista?
ES - Sim, mesmo que cantasse loas ao Como o diabo gosta.
CP - Você concorda?
ES - Tem dias que sim, em geral de manhã, turno em que sou menos burro.
CP - Bom, você falou nos teus verdes anos. Há contos de várias épocas no livro. Isso explica a variedade de técnicas, climas e estilos?
ES - Sim, mas só um pouco. Norman Mailer, aos sessenta anos, disse: "Acho que hoje tenho muito em comum com um dentista com quarenta anos de carreira. Tenho certeza de que ele procura todo dia uma nova maneira de fazer um buraco nos dentes. Se não, ele ficaria louco". Acho ótima a tirada do Mailer, mas suspeito que ele nunca viu um dentista de perto. Enfim, eu gosto muito de alguns escritores por serem sempre os mesmos e fazerem as coisas dos mesmos modos, mas no meu caso acho mais divertido variar. Depois, costumo dar a palavra aos personagens e tento não me meter.
CP - Você acha que o escritor tem de ser o cavalo do personagem, como se diria na umbanda?
ES - Exatamente, mesmo quando o texto é em terceira pessoa, que por sinal uso pouco. Aí talvez o esforço do autor deva ser mais cavalar, diga-se, com perdão do trocadilho.
PC - Você prefere os contos mais antigos ou os mais recentes?
ES - Olha, quando a gente acerta, o tempo não importa. O fato de alguns dos contos mais antigos estarem, em minha opinião, entre os melhores é um acidente que acontece com qualquer escritor. Me incomoda mais que algumas manias sejam as mesmas tantos anos depois.
CP - Dentro dessa variação, há duas grandes incidências: crimes e adolescentes. Se não errei nas contas, tem seis contos de crime e sete com adolescentes, sendo que às vezes crimes e adolescentes se misturam.
ES - Não foi premeditado. Os contos de crime, por exemplo, com exceção de "O sono do assassino", foram inspirados em notícias de jornais, não pelo Rubem Fonseca. Desde a adolescência tenho o hábito de começar o dia pela seção de polícia, pra calibrar minha fé na humanidade. Quer dizer, tinha. Hoje começo pela seção de política.
CP - Mas dois contos parecem coisa do Rubem Fonseca.
ES - Gosto muito de alguns contos dele, da linguagem seca e do senso de aventura. Mas não sei se esses contos de que você fala não devem mais aos chamados romances-reportagem que eram moda nos anos 70, mesmo que eu trate de ver os fatos do ponto de vista dos assassinos.
CP - Os livros de contos, como os discos, em geral têm um ou dois hits e o resto é enchimento. Como você levou tanto tempo pra reunir esses quinze contos, suponho que não haja enchimento nos Corvos na chuva.
ES - A ideia era essa, mas.
CP - Mas uns contos são mais musculosos que outros, é isso?
ES - Digamos assim. Me dê um desconto, já que sou o pai da criança. Se você olhar o volume de modo técnico, acho que dá pra dizer que não tem nada de contrabando. Mas um conto agrada por outros motivos, não? Você pode adorar o humor negro de "Um pedaço de mulher" e detestar o humor melancólico de "O rei da sanfona". Você pode adorar a brutalidade de "Jogo é jogo" e detestar o elíptico "Fogo verde". Você pode se identificar com a bandalheira de "Cerveja, bunda & periquitos" e não achar graça com a brincadeira de "Outra missa". São contos tão diferentes que acho complicado comparar.
CP - Pois é, se vamos pra ponta do lápis, parece haver mais diferenças que semelhanças. Qual a unidade possível num volume assim?
ES - Como já disse, os personagens mandam e não pedem. Cada conto é o personagem: não apenas os fatos, a história, mas o jeito de narrar, a linguagem, os silêncios, o próprio ritmo. O leitor vai se encontrar com umas pessoas, só isso. Umas bastante perigosas.
CP - Fora os dois contos que poderíamos botar na linha do Fonseca, não se nota influência de outros contistas por quem você, se provocado, quer sair pra rua e resolver as diferenças no pau, se o cara for macho.
ES - Sei, Clarice Lispector e Dalton Trevisan, Borges e Cortázar, Caio Fernando Abreu e Sérgio Faraco, Tchekhov e Kafka.
CP - E então?
ES - Como dizia Cortázar, talvez seja melhor falar de confluência, não de influência. Eu aprendi e aprendo com tanta gente que é complicado fazer uma lista. Mas, veja bem, aprender com um autor tem pouco a ver com assumir suas obsessões e repetir seus maneirismos. Peguemos o Borges, por exemplo. Ele é preciso, engraçado, lúcido, infernalmente matreiro. Como desde cedo me senti inclinado a essas coisas, tratei de aprendê-las até onde me foi possível. Estou me lixando pra tigres, punhais e labirintos.
CP - Ou adjetivos suntuosos.
ES - Nada como falar com um corvo esperto.
CP - O livro ganhou a bolsa da Biblioteca Nacional pra conclusão de obra e alguns contos foram premiados. Como foi isso?
ES - Um dia encontrei o Moacyr Scliar e ele me disse: ganhe concursos. Era uma ordem.
CP - Você obedeceu.
ES - Obedeci e fui falar com ele de novo: Moacyr, me mande ganhar na loteria. Ele mandou, eu joguei direitinho na mega-sena, mas não acertei nenhuma dezena.
CP - Moral da história: sem mimimi, escritores, a literatura é mais fácil que a loteria. Bom, vamos às informações de utilidade pública. Quando vai ser o lançamento do Corvos na chuva?
ES - Dia 16 de julho, às 17h, na Palavraria. Importante: vai ter um bate-papo antes, com mediação da Karina Lucena e da Liliam Ramos da Silva, professoras da Letras da UFRGS. Vai ser demais: elas são inteligentes e bonitas.
CP - E o que faz aquele teu fã que mora em Espumoso do Sul ou em Trombudo do Norte?
ES - Acessa a loja virtual da editora: www.jovensescribas.com.br. Frete grátis.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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