O outro Hemingway

“O mundo quebra qualquer um, mas depois disso, alguns ficam mais fortes onde foram quebrados.”  E.H. Em 1923, Ernest Hemingway e seu irriquieto grupo …


"O mundo quebra qualquer um,

mas depois disso, alguns ficam mais

fortes onde foram quebrados." 

E.H.
Em 1923, Ernest Hemingway e seu irriquieto grupo de amigos deixam Paris em direção à Espanha para assistir as touradas na arena de touros de Pamplona. Ele está obcecado em escrever de forma cada vez mais enxuta e afirma que o espetáculo de sangue-e-areia é seu aprendizado:
"A coisa mais simples e fundamental

da vida é a morte violenta".
Hemingway enxergava o duelo entre touro e toureiro como uma síntese que condensa a existência humana em um único lance - escrever, para ele, era um permanente exercício de viver intensamente. A temporada  de touradas em Pamplona o transforma em aficcionado e ele se vale da corrida como parábola do conflito entre a vida e a morte - o mesmo conflito que estará presente em suas futuras novelas.
Poucos dias depois de retornar da Espanha, ele começa a rascunhar The Sun Also Rises, que termina de escrever em menos de dois meses. Com 27 anos e na plenitude de seu vigor e entusiasmo, emerge então a     figura do aventureiro, valentão e machista, que ele - com a cumplicidade dos editores - cultivam até virar um mito. Até mesmo os dois graves acidentes aéreos na Africa servem à medida ao propósito. Ele sofre múltiplas fraturas e circulam boatos de que estaria à beira da morte,    em um hospital em Entebbe, na Uganda.
Os jornalistas acorrem para lá e encontram o escritor em seu quarto, coberto de ataduras e com as duas pernas engessadas. Às gargalhadas, ele lê para os jornalistas seu obituário, publicado por jornais norte-americanos e franceses.

***
Esta persona aventureira e machista poderá ser revista, com a publicação do primeiro volume de The Letters of Ernest Hemingway, compilação das milhares de cartas suas, escritas entre 1907 e 1922. O projeto planeja outros 17 volumes, a serem publicados durante os próximos anos. Grande parte das cartas foi localizada na Finca Vigia, em Cuba, pela pesquisadora da Universidade da Pennsylvania, Sandra Spanier. Ela consegue acesso ao acervo em julho de 1962, um ano após o suicídio do escritor. Hemingway era um literomaníaco, escrevendo rabiscos por toda a parte, em margens de livros, jornais velhos e até nas paredes da casa. Na Finca, onde o escritor morou de 1939 a 1960, foram encontrados cadernos de anotações, rascunhos, revisões de novelas já publicadas, receitas culinárias e até um final alternativo para For Whom the Bell Tolls, que fora rejeitado pelos editores e nunca publicado. Segundo Sandra Spanier, as cartas e manuscritos da Finca Vigia revelam um homem       com múltiplas faces:
"Ernest Hemingway era um ser complexo, mais sensível e

interessante do que a sua imagem pública sugere".
Ela lamenta que um escritor de grande talento seja percebido somente por sua imagem unidimensional - como correspondente de guerra, sobrevivente de desastres, bêbado inveterado, caçador impiedoso e um aventureiro em luta contra as forças da natureza. Já o primeiro volume de The Letters lança luzes sobre a infância e juventude de Hemingway em Oak Park. Indicam sua vulnerabilidade e sensibilidade nas relações amorosas e uma afeição reprimida pelos pais e irmãos. Os registros começam no período entre 1917 e 1918, quando ele era jornalista do Kansas City Star. A seguir, surge a experiência como motorista de ambulância na I Guerra Mundial e da paixão por uma enfermeira do hospital em Milão. Os mesmos episódios que seriam tema de um de seus grandes romances, A Farewell to Arms, de 1929.
Dois anos mais tarde, ele conhece Hadley Richardson, que se tornaria sua primeira esposa. O casal viaja para a s França e Hemingway passa a fazer parte da comunidade de inteletuais, que Gertrude Stein definiria como a geração perdida: F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound, John dos Passos, T.S. Eliot, Sherwood Anderson, John Steinbeck, Isadora Duncan, Henry Miller, Aldous Huxley, Sergei Prokofiev, George Gershwin, Aaron Copland e Sylvia Beach, a dona da Shakespeare and Co. e mentora de James Joyce.

***
Tudo leva a crer que The Letters of Ernest Hemingway contradiz a versão de que o escritor se mantinha distante da família, por saber que julgavam seus casos amorosos como vulgares. Mesmo assim, ele escreve cartas aos pais sobre o casamento e divórcio com Hadley Richardson e sobre o romance com Pauline Pfeiffer. O escritor não esconde nada nas cartas que escreve, usando uma honestidade cortante, quase selvagem. Afirma que é necessário experimentar a vida, antes de escrever sobre ela.
As cartas atestam que Hemingway levou ao limite sua fé que a ficção é verdadeira, na medida em que o autor adquira conhecimento e consciência da realidade. Não por acidente, sua obra mais reelevante é quase sempre autobiográfica, como atestam The Sun also Rises (1926),  A Farewell to Arms (1929), The Snows of Kilimanjaro (1932 ), For Whom the Bell Tolls (1940) e The Old man and the Sea (1952).

***
Algumas das cartas são mais confessionais e reveladoras de quem foi Ernest Hemingway do que seus personagens alter-egos. Com apenas    19 anos, ele descreve aos pais como será seu futuro:
"Mesmo que a vida o maltrate,

derrube e crave os dentes em você, é preciso

não perder a dignidade e viver perigosamente". 
Já em 1940, enquanto saboreava o sucesso de For Whom the Bell Tolls, ele escreve:
"O mundo é um belo lugar para se viver e vale a pena lutar por ele.

Vou odiar ter que deixá-lo um dia". 
Bem mais tarde, quando sente que começa a pagar o preço dos abusos   e ferimentos, a reflexão é quase trágica:
"Seria bem melhor morrer quando feliz e pleno de ilusões,

em uma explosão de luz, do que ter um corpo cansado,

velho e suas ilusões, despedaçadas".

***

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

Comentários