A saudade dói latejada, assim como uma fisgada

Uma dor insuportável, daquelas que calam o fundo do peito e quase cessam a respiração de qualquer pessoa, até mesmo as mais fortes nas …

Uma dor insuportável, daquelas que calam o fundo do peito e quase cessam a respiração de qualquer pessoa, até mesmo as mais fortes nas emoções. Uma dor quase indescritível, daquelas que simplesmente deixam qualquer pessoa imobilizada, sem vontade de fazer absolutamente nada. Uma dor imensurável, daquelas que tiram a coordenação de passado, presente e futuro de qualquer pessoa. Uma dor pungente, dilacerante, extasiante, daquelas que deixam o corpo todo amolecido, inerte, sem reação, sem vontade de realizar qualquer movimento. Uma dor que deixa qualquer um apático, sem vida, sem o ar para respirar.
Essa dor inexplicável assim, que começa ao olhar uma foto de alguém querido que morreu precocemente ou não, ao reencontrar um amor que já não acelera mais o coração da gente ou rever um amigo ou amiga que estão distantes. Essa dor inconcebível assim, que desperta quando nos lembramos de lugares onde fomos extremamente felizes, que revive ao sentirmos um aroma de uma comida associada a momentos satisfatórios. Essa dor incompreensível assim, que se origina ao escutar uma música correspondente a um fato espetacular, ao simples som aveludado, calmo e seguro daquela amiga que está sempre guardada no lado esquerdo do peito.
Com essas dimensões, falo e escrevo sobre uma dor que tem nome e sobrenome. Chama-se saudade. Saudade. Saudade. Mil vezes saudade. Uma palavra sem tradução literal em muitas línguas e que tem origem no latim, com o significado de solidão. É um sentimento que provoca as dores mais insuportáveis na vida de qualquer ser humano. Lendas não confirmadas dizem que a saudade originou-se no período dos descobrimentos e definia a solidão que os portugueses, vindos para o Brasil, nutriam da sua terra e dos seus familiares. Eram, então, atacados por uma espécie de melancolia, por se sentirem tão sós e distantes dos seus. Ah, maldita saudade.
Pois, na segunda-feira de uma semana sem jogos olímpicos, acordei com esta dor que atende pelo nome de saudade. Ah, mas que maldita saudade. Assim do nada, sem explicação, sem obter licença, sem avisar que iria chegar, sem saber se seria bem recebida, a tal saudade me invadiu. Por mais que eu tente afastar, ignorar, expulsar, a saudade está comigo em todos os segundos do dia e da noite. Acreditem ou não (leitores e leitoras têm este direito), uma noite destas cheguei a acordar chorando, desesperadamente, com as memórias de um sonho com alguém que já faleceu. Ah, maldita saudade.
Tenho saudade do meu primeiro namorado, lá atrás quando eu tinha uns 16 anos (sim, naquela época, os namoros começavam mais tarde) e que dançou comigo ao som da música do Gonzaguinha: "começaria tudo outra vez, se preciso fosse meu amor". Tenho saudade de uns piqueniques na casa da Cecília lá em Ipanema quando eu estudava ainda no Ginásio Mãe de Deus (vejam bem, isto foi lá na metade dos anos 70). Tenho saudade de uma amiga que mora hoje em Fortaleza, com quem tinha altas conversas sobre profissão e que volta e meia me recebia em seu apartamento para me ajudar a curar dores de amores com algumas garrafas de vinho.
Amanheci a semana com saudade de ser adolescente e não estar nem aí para nada. Entardeci a semana com saudade de não ter horário para levantar, almoçar, trabalhar e outros compromissos adultos, todos atrelados aos ponteiros do relógio. Anoiteci a semana com saudade de conversar com a Bela Hammes, de falar de profissão com a Adriana Thomasi, de tomar chope com a Laura Parussini, de recitar poemas com a Soninha Porto, de dançar nos bailes do sindicato com a Guérula Viero, de bater papo com as gurias da Prefeitura da Administração Popular, como a Dica Sitoni e de entornar taças de vinho com a amiga Ana Pires, hoje na Alemanha. Adormeci a semana com saudade de receber emails do meu irmão, Luis Fernando Peçanha Martins (Dedé, Luli ou Dédi), e de bebericar goles de café com minha mãe Mirthô no Press Café.
Só posso dizer, apropriando-me novamente de uma das mais belas músicas do meu amante Chico Buarque: "Oh, pedaço de mim, metade afastada de mim, leva o teu olhar, que a saudade é o pior tormento, é pior do que o esquecimento, é pior do que se entrevar?leva os teus sinais, que a saudade dói como um barco, que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais?leva o vulto teu, que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu?leva o que há de ti, que a saudade dói latejada, é assim como uma fisgada no membro que já perdi".

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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