Flâneurs e poetas

  "Tenho a impressão que sempre estarei onde não estou." (Charles Baudelaire) Em 1951, aos 37 anos, Julio Cortázar desembarca em Paris. Tinha planos …

Coluna JA 29-09_01
 
"Tenho a impressão que sempre

estarei onde não estou."
(Charles Baudelaire)
Em 1951, aos 37 anos, Julio Cortázar desembarca em Paris. Tinha planos de escrever e estudar os escritores franceses que mais admirava, como Victor Hugo e Charles Baudelaire. A primeira coisa que faz ao chegar à cidade é ir à procura do número 17 do Quai d?Anjou. Foi ali, no antigo Hôtel Lausun, que Charles Baudelaire morou e escreveu seu célebre poema, ?Les fleurs du Mal?. A bolsa de estudos de Cortázar era de dez meses, mas o poeta se enamora profundamente de Paris e permanece na França até a morte, em 1984. Conforme seu desejo, é sepultado no Cemitério de Montparnasse - não distante do mausoléu de Charles Baudelaire.

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Existem muitos traços em comum - mais do que simples coincidências - entre as trajetórias dos dois escritores. Há quem sugira que seriam vidas paralelas. Ambos tiveram infâncias marcadas por privações e doenças. Ambos produziram prosa e poesia inovadoras e revolucionárias, tanto na forma como no conteúdo. E não por acaso, desde jovens, se identificaram com o lado negro de Edgar Allan Poe.
Os biógrafos concordam que o poeta norte-americano exerceu influência decisiva na poesia de Baudelaire e na prosa de Julio Cortázar. A partir de 1953, ela se torna mais notável, quando o argentino inicia a tradução dos contos de Poe para o espanhol. Um trabalho penoso, que o absorve por meses a fio. Curiosamente, ele repete o que acontecera, um século antes, com Charles Baudelaire, quando este se dedica a traduzir os poemas de Poe, incluindo "O Corvo", um dos mais importantes da língua inglesa. Mesmo com os aplausos recebidos, Baudelaire lamenta que a imersão em Poe lhe causava uma "insônia de desespero" e o fazia "bater o queixo de terror". Para aliviar a pressão, caminha pelas ruas de Paris e se transforma em apologista da flânerie. E registra:
"- Caminhar sem rumo é como praticar uma feitiçaria evocatória."
Então, cem anos mais tarde, Julio Cortázar (para quem Baudelaire era o alter ego de Allan Poe) percorre os mesmos caminhos e encontra nos encantos da cidade a inspiração que buscava:
"- Paris é um pouco a mulher da minha vida.

Caminhar por suas ruas significa avançar até dentro de mim."
Perdido nos labirintos urbanos, Cortázar escreve "O Jogo da Amarelinha", onde o personagem em seus devaneios, descreve Paris como uma imensa metáfora. Posteriormente, no curta-metragem "Julio Cortázar (1979/80)", ele escreveria:
"- Se pensa em conhecer Paris, digo que isso não existe.

Há recantos, ruas para explorar de dia e à noite.

É uma cidade fascinante, não a única.

Mas Paris é um coração que bate todo o tempo.

Não é onde vivo, mas uma osmose, um contato vivo e biológico."

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Ao beber na fonte baudelaireana, Cortázar encontra uma trilha aberta por Edgar Allan Poe, em "O Homem da Multidão". No conto, o narrador, em um café em Londres, se dedica a observar a multidão que desfila na rua. O tempo passa e ele vai classificando as pessoas, até notar um velho solitário, que bebe seu café. Quando o homem sai, o narrador vai segui-lo através da multidão para descobrir quem é. Naquele 1840, Londres era a cidade mais populosa do mundo, com quase 700 mil habitantes. Allan Poe coloca, de forma poética, quase misteriosa, o tema do indivíduo perdido na cidade tomada pela massa humana.
Na Paris de Cortázar também acontecem os desencontros urbanos, como em "O Jogo da Amarelinha". Seja na Pont des Arts ou em um bistrot da rue Monsieur Le Prince, ele visita estes pontos onde as pessoas se desencontram. Ao tempo de Cortázar, o café "Old Navy" no Boulevard Saint Germain, era um dos raros a permanecerem abertos durante a noite. No outono de 1956, um jovem colombiano chamado Gabriel García Márquez permanece por horas no café, na esperança de encontrar o escritor que muito admirava. Até que, em certo dia, vê Cortázar chegar "como uma aparição", mas não tem a coragem de se apresentar. O jovem escritor, futuro prêmio Nobel de Literatura, assim descreve o não-encontro:
"Eu o vi chegar de sua caminhada por Paris, sentar

e escrever por mais de uma hora, sem pausa para pensar,

sem beber nada mais do que meio copo de água.

Quando escureceu, ele saiu com o caderno embaixo do braço

como o estudante mais alto e magro do mundo."

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Talvez, de forma inconsciente, o futuro prêmio Nobel de Literatura simplesmente respeitava o conceito de Charles Baudelaire:
"Paris é o templo do flâneur, o espaço sagrado de suas perambulac?o?es, onde ele se depara com sua contradição: o indivíduo na multidão, sozinho no meio de seus semelhantes".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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