Fragmentos

"Somos nossa memo?ria, um quime?rico museu de formas inconstantes, somos fragmentos de espelhos quebrados". Jorge Luis Borges. O menino de oito anos subiu na …

Coluna JA 01-09-16

"Somos nossa memo?ria, um quime?rico

museu de formas inconstantes,

somos fragmentos de espelhos quebrados".

Jorge Luis Borges.

O menino de oito anos subiu na cerca, retirou a pequena faca da bainha   e começou a riscar letras no moirão da porteira. Ficou torto, mal dava para ler, mas de alguma maneira, ele sabia que aquilo ficaria ali por muito tempo. Guardou a faca e caminhou até a várzea - um caminho que sempre fazia de mãos dadas com o avô. Foi quando ouviu o relinchar do cavalo zaino e a voz da mãe que o chamava pelo nome. E havia urgência naquele chamado.

***
Muito tempo havia se passado desde então. As pessoas que conhecera não estavam mais por perto e a casa branca estava quase abandonada. No entanto, a grande figueira, os altos eucaliptos e a várzea continuavam exatamente como ele lembrava - um mar de verdes que ondulava com o vento. Demorou até encontrar os restos da velha porteira. Ainda estava lá, firme, no mesmo lugar. Passou a mão no alto do moirão. Nada. Como tantas outras coisas, as letras haviam desaparecido. E ele nem lembrava mais do que tentara guardar para sempre.

***
Era um daqueles fins-de-tarde de verão, na hora em que o sol leva o calor embora e o campo respira com a brisa da noite. Os terneiros estavam presos e os cavalos pastavam soltos no campo. Do galpão, chega o alarido de conversas e o cheiro de carne no fogo. Debaixo da figueira, o avô sorve lentamente seu último mate.
" - Vovô, eu queria ouvir conta uma estória de cavalos".
" - Guri, são coisas antigas?nem sei se lembro direito?".
" - Mas eu queria ouvir? A mãe fala que o senhor sabe tantas?."
" - Olha, foram muitos cavalos?Vamos ver se lembro e depois, a gente conversa. Agora, deixa tomar meu mate sossegado".

*** 
Algumas eram reais, outras, inventadas ou aumentadas com o tempo. Dava prá encher um baú, como diziam os trovadores. Uma tristeza que nunca foram escritas e acabaram esquecidas. Sobraram retalhos, como os de uma colcha remendada - as figuras mais fortes reaparecem aqui e ali. Como a tia que não podia comer doces, mas os fazia aos potes para dar às crianças?ou o velho domador que continuava sorrindo com os olhos, já se sabendo doente do pulmão?
Mas, havia uma coisa estranha - o avô gostava mais de estórias de cavalos do que das gente. Ficava mais fácil esquecer, dizia.
" - Guri, te conto de um zaino, o Cartuxo. Foi o cavalo crioulo que mais ganhou carreiras daqui até a encosta da serra. Ganhei de presente dos irmãos Castilhos, quando ainda era um potrilho. Eles cruzaram a melhor potranca com um potro argentino, ganhador de carreras em San Isidro. Quando o Cartuxo nasceu, era miúdo, não impressionava, mas logo notei a marca na testa, era uma estrela perfeita. Sinal de significância?
Deixei o potrilho na mão do João Ramos, que sabe de cavalos mais do que ninguém. Com o tempo, o bicho cresceu bonito, um pelo que brilhava ao sol e arisco como um mal-domado. (?)
Pausa. O velho fazendeiro olha para a várzea, onde antigamente os chucros corriam livres do laço e doma. Então, retoma:
" - Era preciso esconder o Cartuxo dos carreiristas que passavam por aqui. Estão sempre de olho nos potros com jeito de corredor. Então, um dia, o João Ramos chegou perto e falou:
 ? Coronel, este zaino tem sangue de carreira. Dei um galope, na invernada e o bicho corre de cola erguida. Vai ser um ganhador??.
 Mais uma pausa. Desta vez mais longa. E o avô interrompe a estória, antes de contar da carreira da Festa do Divino, quando o Cartuxo tirou dois corpos de vantagem do cavalo do delegado de polícia.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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