Labirintos

"Nos perdemos naquela manhã no labirinto de Creta e desde então, continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto." (Jorge Luis Borges) *** O escritor …

Coluna JA 1509

"Nos perdemos naquela manhã no labirinto de Creta e desde então, continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto."

(Jorge Luis Borges)

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O escritor Umberto Eco mantinha em seu palazzo de Milão um vasto e intrincado labirinto de livros. Em salas, quartos e extensos corredores, se empilhavam 30 mil volumes sobre história, filosofia, poesia, semiótica, arte, clássicos gregos, teologia e religião. Todos os dias, Eco percorria seu labirinto, guiado por uma bússola que só ele controlava. No vídeo da TV italiana, "Umberto Eco, Sulla memoria", ele caminha pelas intermináveis prateleiras abarrotadas, até chegar a uma estante em particular. Então, lança uma mão certeira ao livro que procurava. E proclama, feliz:

"- Eco."

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A obsessão do escritor por livros e labirintos foi explicitada em dois de seus romances mais conhecidos, "O pêndulo de Foucault" e "O nome da Rosa". Em palestras e em ensaios, ele foi incansável na pregação sobre a suprema importância da palavra escrita na história da Humanidade. Lembrava que, quando o conhecimento era transmitido via oral entre as gerações, perdia-se 90% do conhecimento acumulado.
A impressora de Guttemberg lança uma ponte sobre o abismo e, através dela, o conhecimento chega ao alcance de quem buscava crescimento e   iluminação. Mas, no caminho, haviam labirintos a percorrer - reais ou metafóricos - como na biblioteca de O nome da Rosa, onde a memória, a cultura e a religião são ameaçadas por proibição, censura e preconceitos. Umberto Eco se diz um bibliófilo, para ele, o livro é um objeto essencial - é preciso segurá-lo, tê-lo à altura do olho. E em seus labirintos dormem imensos tesouros:

"- Os livros são organismos vivos, que têm vida autônoma,

onde a memória universal flui até pelo ar e até pelo toque

de nossos dedos nas lombadas."

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Este encantamento do escritor italiano é compartilhado por um outro bibliófilo, o argentino Jorge Luis Borges. Que escreveu um dos contos mais curtos da literatura moderna, Os dois reis e os dois labirintos, texto emblemático de seu tema recorrente - os labirintos da memória. Conta a história de um rei da Babilônia, que construiu um labirinto de bronze, com incontáveis escadas, corredores e muros. Com apenas uma entrada e nenhuma saída, espelhando (ao reverso) as bibliotecas labirínticas de Milão e da abadia de O nome da Rosa. Nestas, é preciso achar um livro que é a chave. O tema já surgira em um conto anterior de Borges, A Biblioteca de Babel, mas que poderia ter sido escrito por Umberto Eco, tal a semelhança de como é descrita a Biblioteca, que existe desde toda a Eternidade. Ela é habitada por um ancião, que dedicou a vida à busca de um livro. O escritor a descreve como espelho do Universo - a maioria dos livros estão repletos de incoerências, mas, mesmo assim, guardam todo o conhecimento que pode ser escrito, em todos os idiomas possíveis. Entretanto, ao contrário das bibliotecas de Eco, ("onde a memória universal flui pelo ar e ao toque dos dedos") os títulos nas lombadas dos livros da imensa Biblioteca não guardam nenhuma relação com o seu conteúdo.
Já em "Funes, O memorioso", nos espera mais um paradoxo - sem a memória não existe o tempo. Borges relativiza as coisas, as certezas, a noção de tempo passado, a linguagem e até a diferença entre verdade e ficção. A ficção borgeana sugere o tempo como prisão, na medida em que somos privados da eternidade. Como um nietzscheano, diz que somente podemos sentir a eternidade por um breve instante, pois a permanência desse instante representaria o nosso fim.

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Umberto Eco é outro questionador do estado das coisas. Também usa o tom apocalíptico, mas sarcástico, desafiador. Seus ensaios Memória vegetal e Antes da extinção são demolidores da nova cultura pop - a avalanche dos e-books, o sucesso instantâneo de autores autopublicados, a falsa erudição dos dan browns, as absurdas polêmicas literárias, como a que sugere que Shakespeare nunca existiu.
Em Antes da extinção, os marcianos chegam à Terra em 2020, após a humanidade ter perecido, afogada pelo derretimento das calotas polares. Sem bibliotecas nem livros, os visitantes tentam refazer o conhecimento humano perdido, usando como única fonte de pesquisa os chips dos celulares descartados no lixo. Uma sombria evocação da investigação do detetive franciscano de O Nome da Rosa?.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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