O amor mais sincero

"Você não precisa de talheres de prata para comer como um rei." (Paul Prudhomme) Levado pela mão de experientes gourmets, conheci e frequentei alguns …


"Você não precisa de talheres

de prata para comer como um rei."

(Paul Prudhomme)
Levado pela mão de experientes gourmets, conheci e frequentei alguns dos grandes botequins do Rio de Janeiro e da São Paulo nos anos 70 e 80. As lendas rezam que as memórias gustativas são as que mais cedo nos deixam, mas ainda me restaram alguns vestígios daquelas audazes jornadas. Eram tempos em que gastronomia não constava na pauta dos editores de jornais e era preciso engenho e arte para se aventurar além do trivial. Já que os poucos - e caros - restaurantes franceses estavam fora de cogitação, nosso refúgio era o botequim.

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Meu companheiro constante era um publicitário - e poeta - que sonhava escrever o guia definitivo dos melhores botequins brasileiros. Tinha até título, O mais sincero dos amores, inspirado em George Bernard Shaw, que dizia que o amor pela comida é o mais sincero dos sentimentos. O livro nunca saiu, mas meu amigo virou um respeitado especialista em comidinhas & petiscos. Passageiro frequente da Ponte Aérea, ao chegar no aeroporto, já tinha programado fazer escala em um botequim no caminho da reunião com o cliente. Uma das mais comuns era na Praça Roosevelt, no celebrado Baiuca, onde o cozinheiro Nicola preparava quitutes que arrancavam suspiros em 9 entre 10 publicitários da cidade.
Meu amigo fizera uma descoberta: um acordo tácito entre cozinheiros dos botecos paulistanos, para servir os mesmos pratos nos mesmos dias da semana. Assim, os habituais sabiam o que os aguardava, antes de sentar à mesa. E, quando alguém, fora do circuito, perguntava qual era   o prato do dia, ele recitava em alta voz:
"Na segunda-feira, é o Virado a Paulista,
Na 3a., a Dobradinha à Parmegiana,
E chega a 4a.feira, com a tal Feijoada,
Na 5a.feira, é a vez do Arroz de Braga,
Depois, vem a 6a.feira, o dia de Bacalhoada".

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Um estranho paradoxo - os pratos mais apreciados foram exatamente os que desapareceram nos restaurantes, como a Dobradinha à Parmegiana, a versão italianizada das Tripes a mode de Lyon e um tal Arroz à moda de Braga, cujas origens rendeu muita controvérsia. O sumiço dos clássicos de botequim tem suas razões: são pratos de preparo demorado, com extensa lista de ingredientes e geralmente, servidos para 10 pessoas ou mais. A lista de ingredientes do Arroz de Braga que era servido no Baiúca, Othon e no Danúbio dos velhos tempos explica bem - um quilo de pernil de porco, um quilo de linguiça caseira, dois frangos inteiros, cortados à passarinho, um quilo de arroz, meio quilo de tomates sem sementes, um repolho inteiro, uma cenoura, uma garrafa de vinho branco, bacon defumado, caldo de galinha, cebolas, alecrim, pimentas preta e branca, óleo de oliva, manteiga, sal?

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Quando os cozinheiros dos antigos botequins escreveram seu capítulo na crônica urbana, preservando clássicos pratos de raiz, não existiam evangelistas de gastronomia na TV ou nas seções nobres dos jornais. Aqueles chefs não só preservaram preciosidades, como inventaram algumas delas. Como o mítico O Arroz de Braga, que não nasceu na cidade de Braga, em Portugal, mas foi inventado no Brasil, mais precisamente em Santos, no litoral de São Paulo. Conta-se que, certa noite, um grupo entrou em um pequeno restaurante da Rua Itororó, em Santos, e pediu o jantar. O dono, que se chamava Braga, disse que restavam poucos mantimentos na cozinha, mas se dispôs a improvisar uma refeição. Em uma panela, juntou arroz, frango, toucinho, paio, linguiça portuguesa, tomate, repolho, ervilha, alho, salsinha e cebolinha.
Estava inventado o Arroz de Braga. A receita fez tanto sucesso que o senhor Braga a incluiu no cardápio de seu pequeno restaurante. A fama do prato não demorou a chegar à São Paulo e, em pouco, era reproduzido em todo o país.

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O jornalista Saul Galvão, falecido em 2009, era dedicado frequentador de botequins. Foi o responsável pelo resgate de algumas das grandes receitas de botequins e contava con gusto suas estórias. Segundo uma versão que colheu, o senhor Braga era, na verdade, um ajudante de cozinheiro do Minho, que, no início do século 20, chegou a Santos. Ele preparava um prato muito popular nas terras lusitanas, o Arroz de Pato à moda de Braga. Mas, como pato nunca fez sucesso entre os brasileiros, ele modificou a receita, substituindo o pato por frango, paio e linguiça.
E a estória virou lenda - um dos comensais da Baiúca, em viagem à Portugal, resolveu desviar do caminho e ir até Braga, provar seu prato favorito no local de origem. No entanto, ao pedir Arroz de Braga no principal restaurante da cidade, ouve, entre risadas, o bordão que muitos brasileiros já conheciam:
"Há arroz em Braga, mas não existe Arroz de Braga".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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