Fui embora para Butiá

Durante um tempo razoável de minha vida, principalmente depois da adolescência, morei no charmoso bairro Bom Fim. Em quatro diferentes ruas que eu amo …

Durante um tempo razoável de minha vida, principalmente depois da adolescência, morei no charmoso bairro Bom Fim. Em quatro diferentes ruas que eu amo de paixão doida (já disse em certas colunas que sou superlativa). Habitei a partir dos 21 anos a idolatrada Rua Tomáz Flores, onde confesso vivi lances memoráveis da minha entrada na fase adulta. Depois, rumei com a família para a Rua Fernandes Vieira, ainda hoje um universo inusitado de edifícios, comércio, bares, pets e outros segredos. Deixei a família para invadir, com o companheiro da época, um prédio simpático na Rua Felipe Camarão, quase na divisa com a Rua Vasco da Gama. E, mais tarde, separada com a filha em punho para criar, escolhi o apartamento da minha mãe na Rua Doutor Barros Cassal e, posteriormente, segui com a rebenta Gabriela para outro ponto, um pouquinho mais acima na mesma rua enigmática Barros Cassal.
Esta convivência com o Bom Fim e os seus costumes me fez adquirir alguns hábitos daquele povo que inicialmente colonizou o bairro e atualmente ainda é maioria na região; a comunidade judaica. Por conta disto, sou um pouco afeita a algumas crenças, praxes e rotinas que marcam as artérias enfeitiçadas do entorno. E não vai aí nesta minha adesão as suas práticas nenhuma forma de desrespeito. Muito pelo contrário. É um sinal de afeição, apreço e veneração, características que contrai no dia a dia com este povo tão amável.
Pois uma destas crenças refere-se ao Yom Kipur, conhecido também como Dia do Perdão e considerada a data mais importante da religião judaica. No período, que em 2016 começou na terça-feira, 11 de outubro, e foi até as 18h44 da quarta-feira, 12 de outubro, é aconselhável um jejum nas 25 horas e uma imersão de muita fé, reflexão e meditação sobre os nossos erros, para ao final sermos perdoados. Pelo que li na biografia específica, as orações e o jejum são demonstrações de arrependimento e expiação, em busca do perdão e da felicidade no ano que se inicia. Claro que, com o respeito necessário, fiz uma pequena adaptação nos ritos e dispensei o jejum (um tratamento de saúde não me permite estes arroubos). Mas aproveitei a ocasião para virar algumas páginas da minha vida e acreditar na minha capacidade de melhorar. Sempre. Sem ficar refém do passado, usei o tempo para perdoar, meditar, pensar, contemplar a minha vida e tornar-me capaz e aberta para um futuro melhor e promissor.
E por conta desta ligação com os hábitos do bairro, descobri que o tal ano sabático é também um costume do povo judaico antigo, em que um de cada sete anos era destinado por lei ao repouso compulsório. Neste período, a terra não podia ser cultivada, as dívidas se extinguiam e os escravos, se ainda existissem, conquistavam a liberdade. Após esta temporada, iniciava-se um novo ciclo. Mas existem outros conceitos de sabático. Pode ser a licença de um ano atribuída a cada sete anos aos que trabalham em empresas e aos professores de nível universitário; interrupção das atividades profissionais pelo período de um ano e que pode se referir ao sábado.
Resolvi, como sempre adequando os conceitos as minhas necessidades profissionais e capacidades pessoais, fazer um curto período sabático. E vim embora de mala e cuia para Butiá, passar uns cinco ou seis dias com mano, cunhada e afilhado mais moço, o sapeca Lucas, que completa seus seis anos no início de fevereiro. Fiz uma pausa nem tão prolongada, mas ajustada para semear de novo a terra, deixá-la apta ao cultivo de novas plantações e preparar o espírito para tempos mais contemporâneos, viçosos, tenros, balbuciantes e originais.
E porque escolhi Butiá, vocês devem estar perguntando. Elementar e simples. Lá, sou amiga do rei, tenho o homem que eu quero na cama que escolherei (bem menos). Lá a existência é uma aventura de tal modo inconsequente que Joana a Louca da Espanha vem a ser contraparente da nora que nunca tive. Em Butiá, como já imaginou o poeta Manuel Bandeira em Pasárgada, andarei de bicicleta, montarei em burro brabo, subirei no pau de sebo e quando estiver cansada, deito na beira do açude, mando chamar a mãe-d"água para me contar histórias que no tempo de menina mamãe Mirthô vinha me contar. Em Butiá tem quase tudo. É outra civilização.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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