Joyceniana

""O passado", disse Stephen, "é um pesadelo do qual estou tentando acordar." (James Joyce, "Ulysses") Estava decidido ? a primeira coisa que ele faria …

JA 13-10-16

""O passado", disse Stephen, "é um pesadelo

do qual estou tentando acordar."

(James Joyce, "Ulysses")
Estava decidido - a primeira coisa que ele faria ao desembarcar em Dublin é ir até a Duke Street e procurar pelo número 21, onde funciona o "Byrnes", o mais joyceano dos pubs da cidade. Foi no "Byrnes" que Leopold Bloom - naquele dia 16 de junho de 1904 - almoçou um sanduiche de queijo com um copo de vinho. Ele ainda lembrava das suas primeiras leituras de adolescente: "Ulysses" fora um livro difícil, "um osso duro de roer", como se falava na época. Ele tinha uns 16 ou 17 anos e mal terminara o "Moby Dick", de Herman Melville. Outro verdadeiro desafio, mas suas quase 600 páginas o prenderam na cadeira desde a primeira aparição de Queequeg.
Naquele verão, seus livros de aventuras pareciam sem graça diante da luta do capitão Ahab com a baleia branca. E depois, foi a vez de Leopoldo Bloom entrar na galeria de seus tipos inesquecíveis.

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Durante muito tempo, sentia-se frustrado por não estar em Dublin em um 16 de junho qualquer. Bem mais tarde, resignou-se, quando um dublinense embriagado jurou que o "Bloomsday" era uma data para ser celebrada em qualquer bar do planeta, desde que entre joyceanos convictos. E que a primeira celebração do "Bloomsday" em Dublin só aconteceu muito depois da morte do escritor.
Foi em 1954, quando alguns amigos de Joyce se reuniram na Martello Tower, local onde começa o primeiro capítulo de "Ulysses". De lá, o grupo saiu em romaria pelas ruas da cidade em uma carruagem, repetindo outro episódio do dia de Bloom. No entanto, a ideia de celebrar o "Bloomsday" começara bem antes, em Paris. Em 1929, as livreiras Sylvia Beach e Adrienne Monnier resolveram festejar o lançamento da edição francesa de "Ulysses". A dupla reuniu James Joyce e um grupo de escritores e poetas em um restaurante perto de Versailles. A festa foi marcada para o dia 25 de junho, o que sinaliza que Sylvia Beach talvez ignorasse o significado do dia 16 para o casal James Joyce e Nora Barnacle. Mesmo porque ignorava-se o motivo pelo qual Joyce escolhera o 16 de junho para ser imortalizado em "Ulysses".
Simples: neste dia em 1904, ele conheceu Nora, que tinha 20 anos. Segundo a discreta nota de um jornal de Dublin, foi quando ele e Nora "caminharam juntos" pela primeira vez.

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A convivência de Joyce e Nora foi complexa e tumultuada, mas as cartas que ambos trocaram revelam um casal apaixonado, mesmo com gostos distintos e até conflitantes. Do primeiro encontro, ele lembra que Nora tinha "os olhos de uma santa", enquanto ela escreveria:
"Eu o confundi com um marinheiro sueco, com seus olhos elétricos azuis, boné de iatista e sapatos de lona. Mas, quando falou, eu vi que era apenas mais um dublinense conversando com uma garota do campo."
Após o casamento, o casal viaja para a França, seguindo a trilha de escritores norte-americanos e ingleses que Joyce lia e admirava. Em Paris, viveram crises e tempos difíceis. Em carta para a irmã na Irlanda, Nora se queixa de que Joyce bebia muito e gastava demais. Também ficava impaciente com o tempo que ele passava com os amigos intelectuais. Embora orgulhosa do marido, Nora não entendia seus livros, que considerava obscuros e sem sentido. Em mais de uma oportunidade, declarou que preferia que Joyce   fosse músico e não escritor.
Os joyceanos de Londres e Paris não precisam ir aos pubs de Dublin para celebrar o "Bloomsday". Nas duas cidades é possível seguir as pegadas de Joyce. Em Londres, são conhecidos os lugares onde Joyce e Nora viveram a partir de 1931. No prédio de número 28 B da Campden Grove Street, a placa assinala o local como "English Heritage". Joyce não gostava do lugar, que apelidou de Campden Grave. Cinco minutos de caminhada nos levam até outro endereço joyceano. No nº 10 da Kensington Church Walk fica a antiga casa onde viveu o poeta Ezra Pound, amigo e confidente de Joyce em sua temporada londrina. Um pouco mais distante, na Kensington Court Gardens, morou outra figura sagrada no universo joyceano - o poeta norte-americano T. S. Eliot.
Para completar o roteiro, três minutos na mesma direção levam ao nº 80 da Campden Hill Road, onde residiu o novelista Ford Madox Ford, um dos integrantes da "Lost Generation" parisiense de Gertrude Stein.
Mas será em Paris, onde viveu por mais de 20 anos, que Joyce emerge      como extraordinária figura literária. Ele termina de escrever "Ulysses" no apartamento do amigo Valery Larbaud no nº 71 da rue Cardinal Lemoine. Um certo escritor, norte-americano expatriado e morador da mesma rua, apresenta Joyce a Sylvia Beach, a dona da Shakespeare & Co. Caberia à esta exuberante livreira patrocinar a histórica primeira edição de "Ulysses". E um outro amigo, o escritor, Paul Léon, vem em auxílio de Joyce, convencendo-o a publicar "Finnegans Wake". E será o mesmo Paul Léon que, em 1940, irá salvar manuscritos e anotações que Joyce abandona quando foge de Paris, ameaçada pela iminente invasão alemã.

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Os anos finais de James Joyce em Paris foram de grande tristeza. Ele precisa da ajuda dos amigos para se locomover, pois o glaucoma o estava cegando. Ele se desespera, impossibilitado de escrever ou até de corrigir manuscritos. Ocasionalmente sai de casa, levado pelos amigos para jantar no "Fouquet?s".
Pede um prato, mas não toca na comida, bebendo muito vinho branco. Em uma ocasião memorável, se arrisca a cantar velhas canções irlandesas, sendo acompanhado ao piano por ninguém menos do que Albert Schweitzer.
Depois de seu refúgio no Sul da França, James Joyce vai para a Suíça, onde pede asilo. Morre em 1941, com 55 anos e é enterrado no cemitério de Fluntern, em Zurich. Em seu funeral, amigos recitaram algumas passagens memoráveis de seus livros, como esta, de "Ulysses":
"Caminhamos através de nós mesmos, ao encontro
de ladrões, fantasmas, gigantes, homens velhos,
homens jovens, esposas, viúvas, irmãos,
mas sempre ao encontro de nós mesmos."

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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