Para todas as crianças de todas as idades

Amanheci na quarta-feira, 12 de outubro, feriado nacional para comemorar a aparição para três pescadores de Nossa Senhora Aparecida, lá em 1717, que é …

Amanheci na quarta-feira, 12 de outubro, feriado nacional para comemorar a aparição para três pescadores de Nossa Senhora Aparecida, lá em 1717, que é a padroeira do Brasil, com sinais angustiados de melancolia e saudades. É que na data celebra-se também o Dia da Criança. Pois acordei com lembranças e memórias da minha infância. Das travessuras de subir em árvores, de pular amarelinha desenhada com giz no chão, brincar de elástico e jogar cinco marias. De pedir, com insistência, para ficar um pouco mais fazendo molecagem na praça encravada na esquina da Rua Espírito Santo com a Fernando Machado, quando a mãe Mirthô buscava os filhos no Colégio Paula Soares.
Despertei na quarta-feira com saudade da criança que fui e brincava no meio da Rua Doutor Mário Totta, onde morei a partir dos nove anos, de jogar bola e taco, de esconde-esconde e de pegar. Não tinha medo nenhum de fazer peraltices no meio da rua, porque não existia violência nenhuma e o único momento de intranquilidade e tristeza foi quando os filhos capetas de um vizinho da casa da frente fizeram a minha gata Cairoli de bola de futebol e assassinaram a bichana. Talvez venha deste episódio uma certa aversão aos felinos. Não tinha receio de ficar até mais tarde com as amigas na rua e até sentar nos bancos que enfeitavam as casas e jogar conversa fora ou trocar figurinhas de álbuns ou espalhar cadeiras nas calçadas.
Então, pulei da cama na manhã do Dia da Criança com um misto indesejado de melancolia e saudades. Porque tudo passa tão rápido e é tão bom ser criança e os problemas resumirem-se ao brinquedo que o amiguinho mais abastado não quer emprestar. Porque se perde muito cedo a inocência e a ternura e logo as dores passam a ser cicatrizes impossíveis de ser curadas com as pomadas e formulas milagrosas das mães. Porque hoje até mesmo ser uma simples e indefesa criança é complicado neste cenário de insegurança e a gente sabe todo o dia de um crime, uma violência, um espancamento, uma bala perdida que atingiu um pequeno ser.
Fiquei com uma saudade doida de quando eu era criança e deitava os longos cabelos lisos no colo da minha mãe e ela encaracolando e criando cachos que não existiam, me ensinava, com sua sabedoria que a birra com a colega da escola logo iria se resolver. Fiquei com uma saudade enlouquecida de quando eu precisava ficar cuidando dos meus irmãos menores para a mãe sair e fazia os coitados serem meus alunos e improvisava um quadro negro (não se falava em lousa no século passado) na porta do roupeiro. Fiquei com saudade sapeca de quando eu brincava de bandido da luz vermelha com os manos Nando e Dedé ou armava uma barraca com um cobertor velho para fingir que íamos acampar na floresta encantada.
Assim como as mães nunca deveriam morrer, já disse o poeta Carlos Drummond de Andrade, a gente também nunca deveria deixar de ser criança. Se eu pudesse, estava decretado. Mãe nunca morre e criança é sempre criança. Como o mundo seria mais feliz, mais humano, mais leal, mais sincero, mais agradável e sem maldades.
Como não posso ainda transformar por decreto ou lei as minhas vontades e os desejos secretos ou não, as mães vão continuar morrendo e as crianças vão continuar crescendo. Assim sendo, deixo aqui um beijo enorme nas minhas crianças grandes, a filha Gabriela, o sobrinho e afilhado Rafael e a sobrinha e afilhada de criação Camila. E um upa bem apertado nas minhas crianças (emprestadas ou não) que ainda são crianças, o afilhado pequeno Lucas e os sobrinhos-netos Lohana e João Pedro. Que vocês nunca deixem adormecer a ternura hoje existente em vocês na dureza do dia a dia dos adultos. Para todas as crianças de todas as idades.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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