Diário

…"Saí da janela, depois de volta do café da manhã, sentindo que aquela chuva fininha e calma, sem nenhuma pressa, poderia continuar, claridade a …

?"Saí da janela, depois de volta do café da manhã, sentindo que aquela chuva fininha e calma, sem nenhuma pressa, poderia continuar, claridade a dentro e entrar na escuridão sem dar a mínima importância a quem ansiava por vê-la acabar. Quanto a mim, abrigado por essa tranquilidade que vinha da natureza, coloquei o Bolero de Ravel para rodar e fiquei pensando na intermitência da chuva e do Bolero. Se Ravel estava impaciente, a chuva não. Ravel levou-me a lembrança de sonhos que começam e quando o sonhador pensa que haverá um fim, recomeça a sonhar a mesma coisa, mas de forma diferente. Lá pelo quarto ou quinto recomeço, o pobre sonhador passa a sentir-se num labirinto, não à cata da saída, mas do fim de sonhos que já se transformam, pela repetição, em pesadelos e fazem você acordar exausto. Lembrei-me que, noite dessas, ela - a de sempre - e Helena interpunham-se na minha frente, em rodízio. Ela, apesar de invisível, expunha com lascívia seu invisível corpo nu, num convite à comunhão dos corpos, mas não uma comunhão de amor, ela queria uma fusão de corpos deixando o erótico acontecer em todas as suas infinitas possibilidades. Ela queria um encontro do macho com a fêmea, despido de sentimentos, todo entregue aos instintos da espécie, mas manipulados pela intuição? Já Helena, estátua nua, mostrava-se impassível, objeto de uma beleza quase intangível, um corpo que era a própria celebração do eterno feminino, um corpo ainda em forma de mistério? Desprendia-se de Helena, transcendendo a carne, algo muito espiritual, uma remota lembrança da Pietá, não a do Vaticano, mas a de Florença?Será que já estive em Roma e em Florença, ou só vi essas esculturas em fotos, em livros ?? Mas se ela - a de sempre - de repente lembrou-me uma vitrine em Amsterdã, onde uma prostituta nua se exibia? estive na Itália e na Holanda, é claro? pois até a minha amnésia me assegura que nunca vi esse tipo de fotos? um descuido da amnésia me colocou num mictório, em algum lugar da Holanda, todo esticado, quase na ponta dos pés, pois o mictório, em si, era muito alto? Pronto, tive a certeza que já estive em Paris, pois no museu dei-me conta que nunca havia visto a bunda da Vênus de Milo nas fotos?"
(Diário de uma amnésia, do livro Almanaque do camaleão, da Léo Christiano Editorial)

Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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