Prepare-se, eu vou lhe usar!

Recomendações urgentes a serem adotadas a partir do próximo final de semana. Muita atenção. Doses de cautela. Goles de cuidado. Pílulas de administração em …

Recomendações urgentes a serem adotadas a partir do próximo final de semana. Muita atenção. Doses de cautela. Goles de cuidado. Pílulas de administração em tempos de crise. Corredores estreitos e perfumados com os aromas das paineiras, ipês e jacarandás da tradicional Praça da Alfândega, barracas, estantes, caixas envelhecidas que abrigam os sebos, bancas de livreiros e editores. Deverei usar-lhes, com muita parcimônia e economia no meu primeiro passeio pela 62ª Feira do Livro de Porto Alegre, em 2016, que já está programado para o sábado, 5 de novembro, à tardinha.
Talvez, como ocorreu em anos passados, em decorrência única e exclusivamente de aperto no orçamento, deixarei o local sem carregar sacolas e sacolas com o que existe de melhor para se ler no momento e com os preços sempre acessíveis. Mas, nesta feira que começou no dia 28 de outubro e prossegue até 15 de novembro, com seus mais de 90 expositores, dificilmente passarei pela centenária Alfândega, encravada no Centro Histórico de Porto Alegre, incólume às tentações.
Confesso que não resistirei e deverei sim folhear livros expostos estrategicamente nas barracas para despertar a curiosidade dos leitores. Sinto que meus dedos afoitos irão escarafunchar as capas envelhecidas dos livros que repousam sossegadamente nas caixas dos sebos, em ofertas que enchem os olhos e o intelecto a partir de R$ 5,00 a unidade. E como ando sensível, resistente aos apelos das mais diferentes espécies, se alguma amiga convidar para um café amigo nos arredores da praça, tenho quase certeza que irei aceitar (ei, Lili, velha de guerra).
Entretanto, para manter-me dentro de um cronograma pelo menos razoável de receita e despesa, caminharei desprovida dos cartões de crédito, cheques e demais facilitadores do dinheiro fácil. Logo, deixarei em casa, esquecidos em alguma gaveta todos os inimigos mortais do meu hábito de consumo. Todos. Os que permitem pular fora do limite que já é elástico, os que nos enganam com o pagamento rotativo (que atende também pelo nome de inviável) e aquelas folhas soltas de talão de cheques que podem ser datadas de meses e meses.
Em nome de Nosso Senhor das Pessoas sem Dinheiro, da Nossa Senhora das Endividadas do Cartão de Crédito e do Santo Protetor do Limite do Cheque Especial, afastai de mim todas as tentações da Feira do Livro. Aproveito, desde já, para agradecer o apoio inestimável que terei de Santa Edwiges, protetora dos pobres e endividados, que zelará pelo meu orçamento. Ah, obrigado Santo Expedito (dizem que é o das causas urgentes e impossíveis), porque sei que evitará entulhar mais os armários do meu apartamento com obras que, com certeza, me fariam um ser humanozinho muito, mas muito mais feliz. E culto.
Mesmo assim, munida de tantos cuidados, deverei regressar do passeio com alguns títulos da Libretos, da Clô Barcellos e do Rafael Guimaraens (são tantos que me atraem), com o livro "Todos querem ser Mujica", do Moisés Mendes, primeira obra dos queridos e admiráveis Flávio Ilha e Denise Nunes e mais algumas obras que sempre vasculho do meu idolatrado e Caio Fernando Abreu, para ler pequenas pílulas de sabedoria antes de dormir.
Portanto, feira e seus protagonistas. Ainda que com moderação, irei lhes usar. Aos poucos. Em doses homeopáticas. Em suaves prestações. Porque não conseguirei ficar longe dos perfumes das árvores que cercam a praça e que se misturam, levianamente e despudoradamente, aos cheiros dos livros pendurados nas partes superiores das barracas das mais variadas e respeitadas livrarias e editoras. Talvez, até não consiga manter a promessa e abandone o local, já no primeiro passeio, com mais obras do que o meu apertado dinheiro mensal permita. Mas, vá lá. É só uma vez por ano.
É que ando apressada como o Coelho de Alice. E com medo de que a vida passe muito rápida. Não sei se vale a pena tanto cuidado, tanta economia e tanta lentidão. Depois do dia 15, retornam os habitantes tradicionais da praça. As profissionais do sexo que gastam suas solas de sapatos de um lado a outro nos dias e noites comuns da Alfândega à caça de clientes. Os meninos de rua, que normalmente vagam pelas ruelas do entorno, para ganhar alguns trocados e ajudar em casa ou aguardam um pedaço de comida, de doce, quem sabe um resto de sorvete, voltam ao seu habitat sem carinho nenhum.
Portanto, antes disso, prepara-se:  62ª Feira do Livro, eu vou lhe usar!

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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