"Solo y deshabitado"

"O que importa na vida, não é o que aconteceu, mas como você o recorda." Gabriel Garcia Marquez O argentino Julio Cortázar tinha particular …


"O que importa na vida, não é o que

aconteceu, mas como você o recorda."

Gabriel Garcia Marquez
O argentino Julio Cortázar tinha particular admiração por dois escritores e poetas - o francês Charles Baudelaire e o norte-americano Edgar Allan Poe. Deles, herdou (ou mimetizou) o gosto pelo sombrio e pelo trágico. Sua vida repetiria suas trajetórias e impressiona pelas coincidências. Ao chegar a Paris em 1941, a primeira coisa que Julio Cortázar faz é ir em busca do Hôtel Lausun, onde Charles Baudelaire morava e onde escreveu seu antológico "Les Fleurs du Mal". Ao morrer, 43 anos depois, Cortázar é enterrado no Cemitério de Montparnasse, a poucos passos de distância da sepultura de seu ídolo, Charles Baudelaire.

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As duas datas assinalam uma existência agitada, inquieta e, ao mesmo tempo, fascinante. Julio Cortázar replica o êmulo Baudelaire e mergulha de forma compulsiva na obra de Allan Poe, traduzindo para o espanhol alguns dos poemas que mais o impressionavam. Seu trabalho é elogiado e comparado em qualidade com as traduções de Poe que Baudelaire fez para o francês. Quase ao mesmo tempo, Cortázar se empenha a estudar a vida e obra de Charles Baudelaire, descobrindo que ele sentia grande prazer em caminhar pelas ruas e praças de Paris.
Em busca daquela epifania, refaz os mesmos caminhos que o autor de "Les Fleurs du Mal" percorria exatamente 100 anos antes.
No entanto, Baudelaire não se limitava a fazer a apologia da flânerie.
Em sua curta e atribulada vida, foi capaz de introduzi-la na literatura francesa da "modernité", que ele mesmo definia como "a experiência do artista em viver em uma cidade moderna e sua responsabilidade em traduzir esta experiência".
A influência de Baudelaire alcança figuras notáveis da primeira metade do século XIX: Eugène Delacroix, Richard Wagner, Édouard Manet e Théophile Gautier. Seu revolucionário estilo "prosa-poesia" acabaria por marcar jovens poetas emergentes como Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé. A identificação de Cortázar com Baudelaire e Edgar Allan Poe iria além dos domínios da prosa e poesia. O novelista argentino fica impressionado com o misterioso fim do escritor norte-americano. Em outubro de 1849, Allan Poe foi encontrado delirando nas ruas de Baltimore. Conduzido ao hospital, morre quatro dias depois, sem explicar como chegara à cidade, usando roupas que não eram suas e o que significava o nome "Reynolds", que repetia em seu delírio noturno.
Mais tarde, se descobre que todos os registros de sua passagem pelo hospital haviam sumido, inclusive a certidão de óbito. Coincidência ou não, os últimos anos de Baudelaire foram igualmente marcados por perdas e tragédias. Atormentado por dificuldades financeiras, se torna um alcoólatra e viciado em ópio. Com a saúde abalada, sofre um ataque cardíaco e passa os últimos dois anos semi-paralítico em casas de saúde de Bruxelas e Paris.

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Os derradeiros anos de Cortázar se aproximam tragicamente aos de seus inspiradores. Em 1981, sofre uma hemorragia gástrica que o deixa incapacitado por semanas. Em 1983, com o retorno da democracia na Argentina, faz uma última viagem a Buenos Aires, onde é recebido calorosamente, em contraste com a indiferença das autoridades oficiais.
Ao regressar a Paris, uma compensação - a outorga da nacionalidade francesa. Mas é uma alegria que dura pouco. Em novembro de 1982, cai em depressão com a morte de sua última esposa, Carol Dunlop.
Dois anos depois, é a vez de Cortázar, que morre vítima de leucemia.
A cidade de Buenos Aires lhe prestaria uma homenagem tardia, dando seu nome a uma praça, na interseção da Calle Serrano e Calle Honduras.
Mais tarde, Paris também lhe concede a mesma honra, nomeando como "Plaza Julio Cortazar" a uma pequena praça na Île Saint Louis, local onde se passa seu conto "Las Babas del Diablo".
Em entrevista à TV espanhola, Cortázar recordaria suas caminhadas por Paris e registra os locais prediletos, como a Pont Neuf:
"Ao lado da estátua de Henrique IV, existe uma luz ao fundo e à meia-noite, este canto solitário, surge como uma tela de Paul Delvaux.
Sinto o mistério de seus quadros, a iminência de algo que vai aparecer, se manifestar e que nada tem a ver com a lógica dos acontecimentos diários."
Já os subterrâneos parisienses, que serviram de inspiração para alguns de seus contos, mostram sua visão de temporalidade:
"O metrô é um lugar de passagem, onde a percepção de tempo muda. Meu personagem descobre que o tempo é totalmente diferente quando se está no metrô. Faço esta experiência uma vez a cada quinze dias."

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Para Cortázar, existia uma "imagem secreta" de Paris, que, segundo ele, "somente é revelada após uma tenaz fidelidade, quando entendemos que não vivemos nela por viver, que não andamos nela por rotina".
Este tom mudaria em novembro de 1982, quando morre a esposa Carol Dunlop. Em carta a uma amiga, ele diz se sentir em "un pozo negro y sin fondo". E conclui, amargo e sem esperanças, replicando um Poe ou um Baudelaire moderno:
"No escribiré más, me cuesta hacerlo, estoy solo y deshabitado."

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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