Mágica portátil

"Uma livraria é uma das poucas evidências de que as pessoas ainda pensam." (Jerry Seinfeld) Meu professor de Português no ginásio gostava de repetir …


"Uma livraria é uma das poucas

evidências de que as pessoas ainda pensam."

(Jerry Seinfeld)
Meu professor de Português no ginásio gostava de repetir que não há livros fáceis nem livros difíceis. O que existe, dizia, são ou leitores compenetrados ou leitores displicentes. Aos primeiros, os autores se entregam. Aos outros, negam acesso aos seus melhores encantos e maravilhas. Eu nunca mais esqueci aquela aula do Irmão Lourenço, nos tempos do saudoso Colégio Rosário.

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Quando Alexandre Herculano começava a emperrar, eu deixava de lado seu "Eurico, o presbítero" e ia me divertir com o galhofeiro Manuel Antônio de Almeida. E quando - com algum pesar - fechava as Memórias de um Sargento de Milícias, retomava meu Quincas Borba, mas nem sempre o sisudo Machado de Assis fazia meu dia ficar mais leve. Nas férias, o mais distante possível dos cadernos de estudos, mais uma vez chegava a hora de Edgar Rice Burroughs, Edgar Wallace e Emilio Salgari.
No entanto, depois de algum tempo, o rei das selvas, os pistoleiros de mira certeira e os piratas sanguinolentos ficavam cansativos e o encanto se desvanecia - até as próximas férias. Até que, em um certo verão, descobri um mundo de aventuras que me seguiria por toda a adolescência. Naquele ano, o alemão Karl May me conduziu pelas desconhecidas savanas do Far West e pelos mistérios do Kurdistão bravio.
Então, Winnetou e Old Surehand substituiram Tarzan e Jim da Selva na galeria dos heróis de meus sonhos e fantasias. Enquanto isso, no alto da estante, Joseph Conrad e James Joyce serenamente, esperavam por sua vez.

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Mas, de vez em quando, as lições de Irmão Lourenço estavam de volta, lembrando dos livros lidos pela metade. Recomecei Joyce por mais de uma vez, lutando com longos parágrafos e herméticas metáforas para as quais não tinha paciência. Quando falei disso a um colega, que tinha o apelido de "rato de biblioteca", ouvi, entre risos:
"Quando Joyce começou a escrever, só ele e
Deus sabiam o que ele queria dizer; ao final, só ele?"
O colega, que navegava pelos "autores difíceis com tranquilidade, disse que não havia nada de errado com os best-sellers, mas são os clássicos que definem nosso lugar no mundo, que reviram nossas ideias e desafiam as certezas. Sempre recusei os grandes calhamaços, "tijolos de papel", como brincavam os amigos. Mas quando o Herman Melville apareceu na lista dos grandes livros, embarquei na busca da grande baleia branca.
E foi uma viagem inesquecível - sem falar na façanha de devorar 500 páginas em poucos dias. Moby Dick me animou e abri o primeiro dos sete volumes de Marcel Proust da edição portuguesa. Mas não fui longe, ficando nas Raparigas em Flor e a busca do tempo perdido foi mais uma vez, adiada.
Saí de Proust para um outro desafio - William Shakespeare. Quem me estimulou foram os amigos de teatro, que sugeriram começar pelas comédias. Mas a pretensão era grande e comecei com as tragédias.
Em Hamlet, demorei por mais tempo do que esperava, semanas, talvez mais. Enquanto isto, Macbeth, emprestado por Antonio Abujamra, aguardava a um canto da estante.
Grande parte dos livros que repousam na minha estante ainda conservam as etiquetas amareladas da Livraria do Globo ou da Livraria Americana.
Nos anos 60 e 70, eram as principais livrarias de Porto Alegre, que ficavam a pouco mais de 100 metros uma da outra, em plena Rua da Praia. Que era a grande passarela da cidade, onde todos circulavam, para ver e ser visto. Bons tempos, em que livrarias eram tão populares como cafés e cinemas. Algum tempo mais tarde, as estantes repletas de livros deram lugar a artigos de papelaria. As livrarias foram para os shoppings centers e aeroportos e surgiram os livros de bolso, invenção perfeita para quem gostava de ler em viagem.
As novas gerações de leitores que compram livros em poucos cliques, talvez desconheçam o antigo ritual de percorrer estantes de livros em uma grande livraria, procurando por autores esquecidos ou por títulos esgotados. O rito, quando praticado em uma das monumentais livrarias que ainda sobrevivem, exige uma dedicação toda especial do leitor.
Quem se aventurou pelos labirintos da Livraria Lelo, na cidade do Porto, ou pela majestosa Libreria El Ateneo Grand Splendid, em Buenos Aires, entende o que isso quer dizer.
Por muito tempo - e com a ajuda dos pocket-books, desfrutamos dos encantos das estórias policiais. Ali convivemos com Sherlock Holmes, Jules Maigret, Hercule Poirot e os outros detetives que nos seduziram na hora e para sempre. São leituras amáveis e que nos convidam a flanar pela Londres vitoriana e pelos boulevards parisienses.
O drama detetivesco (nos ensinou o mestre Dashiell Hammett) é como uma jornada com árvores de sombra e bancos de jardins, para que não nos cansemos pelo caminho. Gostamos do estilo enxuto, da economia de palavras, da descrição de ambientes misteriosos e crimes, que sabemos, serão solucionados nas últimas páginas. O pocket-book que compramos na book-store do aeroporto sabe como cativar nossa fantasia e não dá pesadelos. O livro mais vendido do mês tem a mesma função de um opiáceo: relaxa, induz à tranquilidade, endormece. Mas, depois de lido, é provável que o esqueçamos no banco do avião, sem eventual traço de remorso. Mas, certamente, nunca deixaremos para trás o clássico que nos exigiu semanas de dedicação. Não conheço um leitor que tenha esquecido (de propósito) um Almeida Garret ou um Honoré de Balzac. Quem os leu, vai retornar, permitindo que versos e parágrafos passem a fazer parte de sua vida.
Um escritor de sucesso, com milhões de livros vendidos em dezenas de idiomas, cunhou uma frase definitiva, que resume tudo o que foi dito acima:
"O livro é uma mágica portátil."
Stephen King.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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