Joyce, Nabokov e os incômodos da vaidade

Olha um trecho que anotei, ao ler As palavras não se afogam ao atravessar o Atlântico, do Carlos Vaz Marques. Pra bom entendedor, vale …

Olha um trecho que anotei, ao ler As palavras não se afogam ao atravessar o Atlântico, do Carlos Vaz Marques. Pra bom entendedor, vale meses de oficinas de literatura.
"Vaz Marques: Não se sente parte de uma família literária?
"Lobo Antunes: Os escritores de quem eu gostava - quando lia um livro por dia, com treze, catorze, quinze anos - eram aqueles que faziam harakiri.
"Vaz Marques: Harakiri literário?
"Lobo Antunes: Sim. Eu estava a ler e via tudo: o sangue, tudo. Não eram exercícios. Por exemplo, eu gosto do Ulisses, do Joyce, claro que gosto. Mas muitas vezes irrita-me, porque sinto que é acrobacia pela acrobacia. Aí, aproximo-me mais do Tolstoi quando ele fala na eficácia do livro. O livro tem de ser eficaz. Tem de se sacrificar a tentação a favor da eficácia. Por exemplo, o Nabokov. É um excelente escritor e irrita-me. Irrita-me porque estou sempre a vê-lo dizer-me "repara como eu sou inteligente, olha como eu faço isto". E faz bem, de facto. Mas estou sempre a vê-lo a ele atrás dos livros. Já estou farto de dizer isto: o livro é que tem de ser inteligente."
Sobre Joyce, não sei se Lobo Antunes tem razão - não o li o suficiente. Sobre Nabokov tem toda. A vaidade dele sempre me encheu, mas como os livros são muito bons, vou levando. Agora leio Contos reunidos (Alfaguara, 2013). A vaidade é a mesma, mas não a habilidade - há contos em que o homem gasta um terço do espaço em descrições luxuriantes de dias ensolarados, de noites de chuva, de ruas cheias de gente, sem outra razão que nos provar que saca detalhes ínfimos e que pode escrever bonito. Mas e o queco? Nem num romance eu aguento isso.
Em outros contos, Nabokov se esmera, não em revelar uma situação ou flagrar umas pessoas em ações obscuras e absurdas, mas em enganar o leitor. É bobo. Ele se rebaixa ao nível Agatha Christie.
Veja bem, enganar o leitor é uma nobre arte. Só que o leitor tem de ser enganado com histórias e personagens altamente ambíguos. Sabe, o autor tem de tirar o chão de sob os pés do leitor, desorientá-lo em suas certezas e preconceitos. Não se faz isso com truques de enredo, viradas de folhetim ou de filmes gringos. A dona Agatha ficava horas deitada numa banheira pensando na melhor forma de tapear os trouxas - que ambição literária é essa?
Em alguns dos contos, não dá pra prever o Nabokov de O olho, Lolita e Fogo pálido, por exemplo. Nesses livros, ele até pode ter se dedicado deliberadamente às tapeações. Mas as pistas foram disfarçadas com maestria.
Agora, nos contos em que Nabokov esquece de si mesmo, quando esquece do leitor, é magnífico. Pena que sejam poucos.
Nabokov, que se deleita com um estilo luxuoso, cheio de adjetivos escolhidos a dedo, quebra a cara com o tradutor, José Rubens Siqueira. As frases ficaram cheias de ecos, de rimas, e os gerúndios se empilham. É de amargar. Mas o pior são erros do tipo grão de vidro ou pingo de neve. Grão de vidro e pingo de neve não parecem coisa de Google Tradutor?
Por falar em erro, vamos ao melhor exemplo que encontrei até agora. Está na página 159: "Os habitués das pequenas tavernas que queimavam, malignamente, em meio ao fog de um subúrbio melancólico viam um homem atarracado com cabelos despenteados em torno de uma calva e olhos vermelhos como feridas, que sempre escolhia um canto remoto, mas que alegremente pagava uma bebida a qualquer um que fosse importuná-lo". Adorei o "queimavam". Com o "malignamente" pra fechar o quadro, então, me parece obra-prima.
Por que o Siqueira não optou por "pequenas tavernas que ardiam, malignamente, em meio ao fog"? Nem é preciso saber português pra isso. Basta um pouco de ouvido ou bom senso.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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