Tangos e tangueros

"Decí, percanta, ¿Qué has hecho de mi pobre corazón?" (Pascual Contursi) É um típico café de Buenos Aires. Construído no início do século XX, …


"Decí, percanta,

¿Qué has hecho de mi pobre corazón?"

(Pascual Contursi)
É um típico café de Buenos Aires. Construído no início do século XX, sofreu poucas alterações, conservando o estilo característico das fachadas clássicas da Avenida Corrientes, onde ainda funciona no número 1453. Seu interior se manteve inalterado ao longo do tempo - mesas com tampos de mármore, cadeiras de madeira vergada, azulejos brancos e azuis, espelhos bisotês e portas de carvalho. Nas paredes, cartazes antigos de Cinzano, Campari e Fernet Branca. Além de uma gravura da Torre La Giralda, em Sevilha, de onde o café tomou emprestado o nome.

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Mas o La Giralda de Buenos Aires deve ser um tipo de provocação dos argentinos a seus vizinhos do outro lado do Rio de La Plata. O motivo?
Em Montevidéu existe há muito um tradicional café, com o nome de Gran Café y Confiteria La Giralda, com um notável papel na história do tango portenho. E, com certeza, motivo de irritação para os tangueros argentinos. Pois foi ali, em 19 de abril de 1917, que foi executado, pela primeira vez, um dos mais famosos tangos da história, La Cumparsita.
O lançamento aconteceu pelas mãos de um famoso pianista argentino, Roberto Firpo, que pela primeira vez se apresentava no endereço da esquina da Avenida 18 de Julio com Plaza Independencia. O sucesso foi imediato e os aplausos da plateia o fizeram bisar por três vezes a nova melodia, que havia sido composta pouco tempo antes pelo então jovem uruguaio Gerardo Hernán "Becho" Matos Rodríguez. Posteriormente, La Cumparsita recebeu várias letras, sendo a mais cantada, a do notável músico argentino, Pascual Contursi, também autor de Bandoneón Arrabalero, outro tango clássico.

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A composição de Matos Rodríguez correu mundo, despertando o orgulho cívico dos uruguaios, principalmente porque seus intérpretes mais famosos eram todos uruguaios. Um deles era Julio Sousa, nascido em Las Piedras, Canelones em 1926. Era um cantor de voz grave e máscula, conhecido como El Varón del Tango e suas versões de Mano a Mano e Cambalache estão entre os grandes momentos do tango clássico.
No entanto, La Cumparsita chegaria ao auge da fama com outro gigante do tango, Carlos Gardel, que os uruguaios garantem ser natural de Tacuarembó, enquanto os argentinos juram que era francês.
Com uma voz que combinava um timbre único, sentimento e força dramática, El Zorzal Criollo, como o chamavam em Montevidéu, fez de La Cumparsita uma das músicas mais tocadas em todos os tempos, com o maior número de versões conhecidas - mais de quinhentas.
Em 1998, o presidente Julio María Sanguinetti assinou lei que deu à música o status de Hino Cultural e Popular, uma espécie de resposta aos argentinos, que sempre se afirmaram como inventores do tango. Mas a resposta não tardou - dois anos depois, na abertura da Olimpíada de Sydney, a delegação argentina desfilou embalada pelos compassos   de La Cumparsita, fazendo com que o governo uruguaio imediatamente apresentasse protesto na embaixada argentina em Montevidéu.
A polêmica parece infindável e até hoje, os dois lados do Rio de La Plata usam antigas estórias para provocar seus vizinhos. Comenta-se que o grande bandeonista Astor Piazzolla, quando ainda se dedicava à música erudita, não gostava de Carlos Gardel e de suas interpretações. Certa vez, tentando acompanhar Gardel, ouviu uma crítica ferina:
"Pibe, tocando bandoneón és um fenômeno,
mas no tango, és um galego."
O que teria provocado uma ressentida resposta de Piazzolla. Ao ouvir Gardel em celebrada interpretação de La Cumparsita, o autor de Adiós Nonino teria cravado:
"- Es uno de los peores y más pobres tangos del mundo."

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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