A elite do atraso

Jessé de Souza está pra lançar novo livro, A elite do atraso ? Da escravidão à Lava Jato, que completa a trilogia que começa …

Jessé de Souza está pra lançar novo livro, A elite do atraso - Da escravidão à Lava Jato, que completa a trilogia que começa com A ralé brasileira, de 2009, e A tolice da inteligência brasileira, de 2015. Jessé tenta repensar a formação do País, não só não caindo nas armadilhas em que Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, entre outros, ficaram presos, às vezes com orgulho, como apontando-as e explicando-as. Li A tolice, mas achei difícil, na minha ignorância da sociologia. Entendi o cerne da argumentação e boiei nos detalhes.
Agora leio A ralé. Ou fiquei mais esperto ou Jessé preferiu usar uma linguagem acessível ao leitor comum. O certo é que o livro me parece transparente e sensacional, nada menos. A crítica aos velhos e novos pensadores é a mesma, mas mais clara e mais minuciosa. Daí que sua contundência é fatal.
Pra completar, com vários pesquisadores, Jessé apresenta a ralé em toda a sua miséria - material, intelectual e afetiva. Surpresa, os pobres reais são bem diferentes dos pobres das novelas da tevê. Prepare-se pra descobrir que você tem um monte de preconceitos e que o buraco é muito mais embaixo.
Espero que Jessé, no novo livro, bote a elite do Bananão contra a parede e nos dê aquela foto de frente e de perfil que a polícia faz dos criminosos. Espero também que algum amigo me empreste A elite do atraso ou me dê de presente. Devido justamente ao atraso proporcionado pela dita elite, me falta a grana pra comprá-lo.
Abaixo, transcrevo uns trechos da entrevista que ele deu ao repórter Sérgio Lírio, da Carta Capital. Quer um conselho? Leia toda ela: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/jesse-souza-201ca-classe-media-e-feita-de-imbecil-pela-elite201d.
Quer se ilustrar completamente sobre o Bananão e arredores, quer dizer, o resto do inferno? Aproveite e leia também a entrevista do professor Sociologia e escritor Antonio Davi Cattani, no jornal Extraclasse, a Flávio Ilha: http://www.extraclasse.org.br/edicoes/2017/08/podres-de-ricos-investem-no-desastre-social/. Excelente - Cattani bota os super-ricos na roda e apresenta as provas. Acho que é nocaute. Mas é apenas um aperitivo pro livro que ele acaba de lançar pela Tomo Editorial: Ricos, pobres de rico. Livro curtinho e sem economês.
CC: A sociedade brasileira foi forjada à sombra da escravidão, é isso?
JS: Exatamente. Muito se fala sobre a escravidão e pouco se reflete a respeito. A escravidão é tratada como um "nome" e não como um "conceito científico" que cria relações sociais muito específicas. Atribuiu-se muitas de nossas características à dita herança portuguesa, mas não havia escravidão em Portugal. Somos, nós brasileiros, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma Justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força, para acumular capital, como acontece até hoje, e humilhar e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.
CC: Um modelo que se perpetua, anota o senhor no novo livro.
JS: Sim. Como essa herança nunca foi refletida e criticada, continua sob outras máscaras. O ódio aos pobres é tão intenso que qualquer melhora na miséria gera reação violenta, apoiada pela mídia. E o tipo de rapina econômica de curto prazo que também reflete o mesmo padrão do escravismo.
(?)
CC: O moralismo seletivo de certos setores não exprime mais um ódio de classe do que a aversão à corrupção?
JS: Sim. Uma parte privilegiada da sociedade passou a se sentir ameaçada pela pequena ascensão econômica desses grupos historicamente abandonados. Esse sentimento se expressava na irritação com a presença de pobres em shopping centers e nos aeroportos, que, segundo essa elite, tinham se tornado rodoviárias.
A irritação aumentou quando os pobres passaram a frequentar as universidades. Por quê? A partir desse momento, investiu-se contra uma das bases do poder de uma das alas que compõem o pacto antipopular, o acesso privilegiado, quase exclusivo, ao conhecimento formal considerado legítimo. Esse incômodo, até pouco tempo atrás, só podia ser compartilhado em uma roda de amigos. Não era de bom tom criticar a melhora de vida dos mais pobres.
CC: Como o moralismo entra em cena?
JS: O moralismo seletivo tem servido para atingir os principais agentes dessa pequena ascensão social, Lula e o PT. São o alvo da ira em um sistema político montado para ser corrompido, não por indivíduos, mas pelo mercado. São os grandes oligopólios e o sistema financeiro que mandam no País e que promovem a verdadeira corrupção, quantitativamente muito maior do que essa merreca exposta pela Lava Jato. O procurador-geral, Rodrigo Janot, comemora a devolução de 1 bilhão de reais aos cofres públicos com a operação. Só em juros e isenções fiscais o Brasil perde mil vezes mais.
CC: Esse pacto antipopular pode ser rompido? O fato de os antigos representantes políticos dessa elite terem se tornado alvo da Lava Jato não fragiliza essa relação, ao menos neste momento?
JS: Sem um pensamento articulado e novo, não. A única saída seria explicitar o papel da elite, que prospera no saque, na rapina. A classe média é feita de imbecil. Existe uma elite que a explora. Basta se pensar no custo da saúde pública. Por que é tão cara? Porque o sistema financeiro se apropriou dela. O custo da escola privada, da alimentação. A classe média está com a corda no pescoço, pois sustenta uma ínfima minoria de privilegiados, que enforca todo o resto da sociedade. A base da corrupção é uma elite econômica que compra a mídia, a Justiça, a política, e mantém o povo em um estado permanente de imbecilidade.
CC: Qual a diferença entre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos?
JS: Não há tanta diferença. Nos Estados Unidos, a parte não escravocrata dominou a porção escravocrata. No Brasil, isso jamais aconteceu. Ou seja, aqui é ainda pior. Os Estados Unidos não são, porém, exemplares. Por conta da escravidão, são extremamente desiguais e violentos. Em países de passado escravocrata, não se vê a prática da cidadania. Um pensador importante, Norbert Elias, explica a civilização europeia a partir da ruptura com a escravidão. É simples. Sem que se considere o outro humano, não se carrega culpa ou remorso. No Brasil atual prospera uma sociedade sem culpa e sem remorso, que humilha e mata os pobres.
(?)
CC: O senhor acredita em eleições em 2018?
JS: Com a nossa elite, a nossa mídia, a nossa Justiça, tudo é possível. O principal fator de coesão da elite é o ódio aos pobres. Os políticos, por sua vez, viraram símbolo da rapinagem. Eles roubam mesmo, ao menos em grande parte, mas, em analogia com o narcotráfico, não passam de "aviõezinhos". Os donos da boca de fumo são o sistema financeiro e os oligopólios. São estes que assaltam o País em grandes proporções. E somos cegos em relação a esse aspecto. A privatização do Estado é montada por esses grandes grupos. Não conseguimos perceber a atuação do chamado mercado. Fomos imbecilizados por essa mídia, que é paga pelos agentes desse mercado. Somos induzidos a acreditar que o poder público só se contrapõe aos indivíduos e não a esses interesses corporativos organizados. O poder real consegue ficar invisível no País.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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