Como enriqueci no projeto Adote um Escritor

Fui adotado pela primeira vez em 2002, quando o projeto iniciou. Nesses quinze anos, fui adotado no mínimo por trinta escolas, porque nunca foram …

Fui adotado pela primeira vez em 2002, quando o projeto iniciou. Nesses quinze anos, fui adotado no mínimo por trinta escolas, porque nunca foram menos que duas por ano. Se não caduco, houve época em que fui adotado por três ou até quatro. Cheguei a pensar que, diante do sucesso do projeto, a prefeitura iria expandir o número de adoções.
Coisas do Bananão, aconteceu o contrário. Sim, se está dando certo, olho vivo, melhor acabar logo com a coisa. Não vá o cara sentir o gostinho e querer chegar ao primeiro mundo. Onde já se viu?
Vamos combinar, nessas alturas do apocalipse, não precisa mais falar em importância da leitura. Até o prefeito sabe dela. Se não sabe, deve fazer um esforço e se alfabetizar.
Mas a falta de grana? Sim, acho que a falta de grana tem de ser discutida. Se há grana pra comprar deputados e senadores, por que não tem pra Educação? Se há grana pra sustentar milionariamente vinte mil rentistas, por que não tem pra Educação? Se há grana pra perdoar sonegadores que devem, por ano, o equivalente a mais de mil Lava Jato, por que não tem pra Educação? Quem quiser preencher a linha pontilhada, esteja a gosto.
Eu disse que houve época em que fui até a quatro escolas por ano. Quase enriqueci. Sério, façam as contas: direitos autorais (8%) sobre dez exemplares dos meus livros em média por escola, mais um cachê de quatrocentos ou quinhentos reais (pagos em geral cinco ou seis ou sete meses depois). Claro que a verba que a escola recebia daria pra comprar uns cem exemplares. Mas existem outros autores além dos adotados. Uma biblioteca não pode ser só de adotados, confere?
Pensam que reclamei? Sempre soube que estava metido numa luta de cavaleiro contra o gigante Briareu, aquele de cem braços. Uma luta que não era só minha, mas das professoras e dos organizadores do projeto. Eu me senti pago, muito bem pago, ao viver histórias como uma que contei aqui mesmo neste espaço. Talvez alguém lembre. Numa escola, uma menina de uns sete anos pegou um livro meu, deu uma folhada e disse sem mesmo me olhar, como se jogasse conversa fora com uma colega: "Já li mais de cem vezes".
Essa menina me deu uma tremenda alegria: ela tinha sido fisgada pela leitura e meu trabalho tinha ajudado um pouco. Não é o bastante? Não, não. Isso é só o começo. Quem leu um livro cem vezes, ou mesmo dez, já que cem é força de expressão, deveria ter esse livro e a chance de encontrar outros pra gostar tanto como dele ou até mais. Essa menina não tinha dinheiro pra comprar livro nenhum. Como eu não tinha nenhum exemplar pra dar pra ela, me consolei com o óbvio: ao menos a menina tinha acesso a alguns livros. Grande vitória em termos bananenses.
É injusto ela compartilhar esse livro com dezenas e dezenas de outras crianças através dos anos? Eu vi em várias bibliotecas escolares meus livros em estado miserável de tanto uso: remendados, sebosos, fedorentos. Mas, segundo a Secretaria de Educação, as escolas já têm um bom acervo, não precisam ficar comprando livro a toda hora. Dizer o quê, se às vezes falta verba pra merenda? A ralé não pode ser melindrosa. Nem os escritores.
Essa menina, que conheci numa escola no bairro Restinga, me lembra outra, que conheci no Ruben Berta. Fui uma vez numa escola no Ruben Berta e anos depois, em outra, não muito longe. Uma menina veio falar comigo, toda entusiasmada. Então uma professora me contou que ela tinha aparecido com um volume dos meus Contos de morte morrida. Como se sabia que ela não teria como comprá-lo, perguntaram onde o tinha conseguido. Disse que achou num beco perto de casa. Depois de uma rápida investigação, se descobriu que uma irmã da menina estudava na escola que eu visitara antes e que havia retirado o livro na biblioteca. A menina achava injusto não ter um volume dela, só dela.
Não é o que acontece com todos nós, leitores, com os livros de que gostamos? Mesmo no meu ceticismo, sempre esperei que o Adote um Escritor tivesse verba pra comprar livros pra dar pros alunos. Se não me engano, houve, por um breve tempo, a distribuição de um vale pra que as crianças das escolas que participaram no projeto pudessem ir à Feira do Livro comprar o que quisessem. Era uma mixaria, sim, mas pelo menos essas crianças não iam à Feira apenas olhar os livros e depois tomar uma Coca-Cola, como acontece quase sempre. Imagine ser convidado pra uma festa que acontece do lado de lá de uma grade eletrificada.
O que as crianças aprendem em seguida numa escola da periferia é que, no Bananão, elas têm duas chances, uma boa e uma ruim. A boa é trabalhar nos piores empregos pra receber uma miséria. A ruim é partir pro crime, que dá cadeia ou morte em tempo recorde. Aí a gente vê os governantes "dando o seu melhor", como dizem os jogadores de futebol, as atrizinhas da Globo e subcelebridades iletradas, pra que o que não estava bom fique péssimo.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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