Cuidado: eu escuto vozes de gente morta

Por favor, não escondam suas crianças, nem chamem o síndico, nem chamem o hospício. Juro, que eu não posso causar mal nenhum a não …

Por favor, não escondam suas crianças, nem chamem o síndico, nem chamem o hospício. Juro, que eu não posso causar mal nenhum a não ser a mim mesmo. Utilizei este pequeno trecho da música "Mal Nenhum", parceria de Cazuza e Lobão (eca) para o primeiro álbum solo do poeta de nome pomposo Agenor de Miranda Araújo Neto, codinome Cazuza, em 1985, após sua saída do grupo Barão Vermelho, para reforçar que apesar de parecer um tanto quanto doida, sem noção e, às vezes, até mesmo com os parafusos soltos, não sou uma pessoa perigosa. Algumas atitudes podem auxiliar na minha qualificação de pessoa a ser evitada como acordar de péssimo humor, apresentar atitudes bipolares, ter mania de arrumação, ser extremamente organizada, saber exatamente o local dos livros na estante do armário da sala.
Mas o que realmente me faz uma pessoa, digamos assim, perigosa é que ando ouvindo vozes. E como ensinou Marcelo Nova, do grupo Camisa de Vênus, na canção "Eu não matei Joana D?Arc", em função disso, para conseguir dormir, preciso de vez em quando tomar algumas doses. Porque, cuidado: cada vez mais eu escuto gente morta. E não tem hora certa para isto ocorrer. Não tem lugar exato para o fato me assombrar. Não tem instrumento preferido para que isto aconteça. Pode ser em casa, no sindicato, no transporte público e nos parques. Assim como escreveu Hyldon, na música "Na rua, na chuva, na fazenda", posso ouvir mortos até numa casinha de sapê.
A situação está bem preocupante. Porque cada vez mais eu escuto gente morta. Com uma frequência exagerada, ouço as vozes do Cazuza, nas mais lindas e poéticas canções que saem dos CDs dele que coleciono, Cássia Eller, em muitos DVDs que ocupam espaço musical privilegiado na apertada sala do apartamento,, Renato Russo e toda a sua legião e o mago Raul Seixas. Mas não fica só aí a minha audição de mortos. Não tem um dia, útil ou feriado, que não ouça a voz da Pimentinha, da Eliscóptero ou da Hélice Regina com sua perfeição nas interpretações impecáveis ecoando pelos cantos da minha casa. Ou a bossa nova do maestro soberano Tom Jobim e seus acordes encantadores no piano.
Costumo ouvir, com uma certa periodicidade, o tom rouco da Maysa, a serenidade na voz que sai das canções de Clara Nunes, o timbre grave e aveludado de Cauby Peixoto, e as obras de Vinicius de Moraes exaltando a figura feminina e reforçando a importância do amor. Mas o caso é bem pior. Pois escuto, todo dia e noite gente morta. Seguidamente, toca no aparelho de som, no celular ou no notebook a voz no estilo soul do Tim Maia, ou do Belchior e suas angústias de juventude, reflexões sobre política e sociedade. E também confesso que não faltam nas minhas audições as músicas de pai e filho, Gonzagão e Gonzaguinha.
Pois desde a última sexta-feira, 4 de agosto, comecei a ouvir a voz de mais um morto. Escuto agora também o som suingado de Luiz Melodia, o negro gato que morreu vítima de um câncer de medula, aos 66 anos. Melodia e suas divinas criações tocam dia e noite, noite e dia e sou pega cantarolando suas músicas a qualquer hora. O autor de Pérola Negra, Magrelinha, Juventude Transviada, Estácio Holly Estácio, Ébano e tantas outras, é mais um que integra a minha lista de cantores e cantoras que já faleceram e que me fazem escutar gente morta. Será que tenho salvação? Será que preciso ser internada? Será que um dia isso passa?

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

Comentários