Doces e doçarias
"A vida é curta. repita a sobremesa." (Barbra Streisand) A avó Ana Augusta guardava suas receitas de doces em caixas de sapatos. Eram centenas …
"A vida é curta.
repita a sobremesa."
(Barbara Streisand)
A avó Ana Augusta guardava suas receitas de doces em caixas de sapatos. Eram centenas de folhas escritas à mão, segredos da doçaria portuguesa que ela colecionava desde os tempos de solteira. Receitas daqueles doces ancestrais e verdadeiros, que hoje seriam condenados pelo bom-mocismo da nutrição saudável. Ainda lembro os grandes tachos no fogão à lenha, onde se despejavam litros de leite fresco e gordo, dúzias e dúzias de ovos, quilos de frutas recém-colhidas e açúcar às conchadas. Os aromas das misteriosas misturas se espelhavam pela casa e ficaram cristalizados em minha memória emocional.
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Naqueles dias, a doçaria era parte obrigatória em refeições e nos lanches.
O açúcar ainda não se tornara o Grande Vilão, responsável por todos os males e doenças da humanidade. Belos tempos, quando saboreávamos compotas, geleias, doces em calda, tortas e pudins sem culpa e sem pensar na balança.
Dias e calmas noites? O relógio de parede na sala de visitas era mais um objeto de estimação do que senhor de nossas horas e minutos. As brasas nunca se apagavam no fogão recheado de achas de lenha. Era preciso estar aceso às seis da manhã para ferver o leite recém-tirado e para manter aquecida a água para o mate, o café de bule e os chás da tia Vieira. Como o sol lá fora regulava o campo, o fogão da avó Ana Augusta ditava o cotidiano na casa.
Os pratos da comida-de-sal, quase sempre os mesmos: carne assada, arroz-de-carreteiro, feijão, batatas cozidas e creme de moranga. Mas os doces que emergiam das caixas-de-sapatos da avó?
A cada vez, uma redescoberta de sabores, cores e misturas: doces de abóbora, banana, laranja amarga, pera, maçã, goiaba, marmelo. E saindo do reino das frutas, sagus, doces de amêndoas, os arrozes-de-leite, os merengues e de tempos em tempos, as rapadurinhas de amendoim e a mais desejada de todas - a dourada e perfumada ambrosia.
A mesma discussão brotava a cada vez que as travessas de ambrosia, com detalhes de pau-de-canela aterrissavam à mesa. Alguns falavam de uma herança moura, trazidas pelos espanhóis, outros que era um uma receita dos índios guaranis. A discussão não tinha fim, mas as travessas logo se esvaziavam.
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Mesmo na cidade que se recusava a crescer, lembro os dias amáveis, quando sobrava tempo para preparar demoradas e elaboradas receitas de avós e bisavós. Os vizinhos se cumprimentavam de manhã e à noite e suas mulheres trocavam receitas e pratinhos da doçaria caseira. Na rua onde morávamos, havia uma dona Bertha, que usava um coque no alto da cabeça. Gozava fama de excelente doceira e fazia incríveis mil-folhas, recheados de nata fresca e doce-e-leite vindo do Uruguai.
Ela não vendia os doces, sentia prazer em compartilhar os folhados com os vizinhos. Com a recomendação que fossem saboreados no mesmo dia, enquanto estivessem frescos. Como se fosse possível não devorar aqueles mil-folhas na mesma hora. Um pouco mais longe, além da esquina da Ramiro Barcelos, morava uma família de espanhóis, que raramente falava com os vizinhos. O senhor Molina era importador de especiarias, azeite, tâmaras e figos cristalizados. Era baixo, gordo, sempre de boina e tinha orgulho de dizer que era sevilhano e andaluz.
Por alguma razão, em um domingo de verão, ele subiu a rua, batendo de porta em porta, oferecendo fatias de Torta de Alfajores, explicando que era o doce típico da Andaluzia. E que, para os sevilhanos compartilhar alfajores no Dia de Todos os Santos, trazia buena suerte para quem recebia - e para quem oferecia.
Superstição ou suerte, o fato é que, meses depois, os Molinas embarcaram para a Espanha para o enterro de um parente. Ao se despedir, o señor Molina anunciou que ia tomar posse de uma herança de família, que incluía plantações de oliveira e um castelo na Andaluzia.
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