A autocrítica da direita

Eu pretendia citar um longo parágrafo do artigo brilhante do Fernando Horta, no GGN, sobre a encrenca da autocrítica da esquerda e passar a outras mazelas. Mas o demônio me disse: "Só? Deixe de preguiça, escreva alguma coisa. Quem sabe você acha algum detalhe novo ou, pelo menos, ilustra a infâmia com exemplos mais grotescos. Depois, lembre-se: tudo o que se disser sobre isso será pouco".

Como se vê, caí em tentação.

Não passa um mês sem que alguém, animado pelo fogo virtuoso de evangélicos e católicos praticantes, venha dizer que a esquerda deve fazer uma autocrítica. É automática a noção de que a esquerda erra uma vez depois da outra e nunca reconhece isso. Mais, está implícito que essa autocrítica deve ser feita em público, talvez botar cilício e se flagelar com chibata de cinco pontas nas praças da cidade, ou, como no tempo do Cervantes, desfilar pelas ruas montada num burro, com guizos e a lista dos crimes pendurada nas costas, pra ser apedrejada pelos cidadãos de bem.

Talvez caiba a pergunta: por que a esquerda deve embarcar nessa? Ela é criticada violenta e continuamente por todo mundo. Sim, sim, até pela própria esquerda. Tendências diferentes quase se matam entre si e com uma profundidade e agudeza que a direita, amarrada na defesa do indefensável, é incapaz de alcançar. Diante disso, o que sobra pra autocrítica? O que se deve pedir pra esquerda é que deixe de cometer os mesmos erros, tipo se dividir porque beltrano olhou atravessado pra fulano.

O estranho é que ninguém peça, com o mesmo ardor e insistência, que a direita faça sua autocrítica. O mundo está aí, em escombros, devido à ganância desse pessoal, mas ninguém se dá por achado. Até se finge que o paraíso está sendo construído. Ingenuidade minha, claro. Quem pode esperar autocrítica de sociopatas?

Na verdade, o que temos de esperar são distorções pra livrar a própria cara e incriminar os outros. Como Fernando Horta demonstra, a Inglaterra e a Bélgica botam Stalin no chinelo em matéria de atrocidades. Mas seus bandidos são pintados como heróis da liberdade. Parece que hindus e negros mortos são mais baratos, nem vale o esforço de computar, ou os negócios ingleses e belgas são de uma honestidade que qualquer sacrifício é uma bênção.

Querem mais detalhes sobre distorções? Assistam aos três episódios do documentário O guia pervertido da ideologia, com o filósofo Slavoj Zizek. Está na rede. Mas antes tome um sal de frutas, porque, se você pensava que assistia a obras de artes e a entretenimento inocente fabricados por Hollywood, vai descobrir que na maioria dos casos a arte e a diversão são apenas a camada de açúcar que encobre a ração pra cachorro.

A gente sabe, ou pelo menos os mais informados sabem, que os Estados Unidos não são uma democracia, mas um império, uma sociedade militarizada e corrupta até o tutano. Gore Vidal, um dos poucos americanos a criticar com acidez a América, escreveu uns romances sobre isso - um inclusive chamado, veja só a coincidência, Império - pra mostrar a coisa em detalhes. Cito dois trechinhos de um ensaio dele de 1973, do livro De fato e de ficção, sobre West Point, que ele define como a academia que forma uma casta de idiotas incompetentes e arrogantes pra servir os trustes civis: "Há 32 anos [afirmação de 1973, lembre-se] os Estados Unidos são um estado militarizado. Os militares gostam de estar participando de alguma guerrinha em algum lugar do mundo para justificar os bilhões de dólares gastos. Ou, como disse o general Van Fleet (W. P. 1915) com certa satisfação: 'A Coreia foi uma bênção. É preciso que haja Coreias, aqui ou em qualquer outro lugar do mundo'".

O general de divisão Smedley Butler disse, ao comentar seus 33 anos no corpo de fuzileiros navais: "Eu passava a maior parte do tempo sendo um leão de chácara de primeira categoria para os Grandes Negócios, Wall Street e os Banqueiros. Em suma, eu era um extorsionário, um gângster do capitalismo... Como todos os membros da carreira militar, nunca tive nenhum pensamento original enquanto não saí da ativa... Ajudei a tornar o México - especialmente Tampico - um lugar seguro para os interesses americanos do petróleo em 1914. Resolvi transformar o Haiti e Cuba em lugares decentes para a coleta de rendas pelos rapazes do National City Bank...". Enquanto isso, soldados e gringos em geral falam, de boca cheia, sobre patriotismo - patriotismo esse muito admirado por eminentes cidadãos de bem do Bananão.

Com grande atraso - bota atraso nisso -, assisti a Capitalismo: uma história de amor. Excelente, como não diria Mr. Burns. Achei refrescante ver Michael Moore, um gringo rico, que poderia ficar no seu canto sem se incomodar, esfregando na cara da elite financeira americana as provas de seus crimes. Em 2008, a gentalha do capital financeiro quebrou a economia do mundo, ninguém foi preso e o governo Bush a premiou com 700 bilhões de dólares pagos pelos contribuintes contra a vontade deles. FHC, Serra, Aécio, Temer, Dória? Amadores de quinta categoria.

É essa gentalha - ou a cópia em carbono dela no Bananão - que vem pedir autocrítica aos outros.

Aldous Huxley 1

Em Satânicos e visionários, livro publicado em 1929: "A grande maioria dos escravos da atualidade não são cristãos de modo algum. Ou se encontram perfeitamente satisfeitos para sentir a necessidade de uma fé consoladora (como o prova a transformação do Cristianismo na América, de uma religião eminentemente preocupada com virtudes extraterrenas e vinganças póstumas para um sistema de justificação da riqueza e de apologia de uma respeitabilidade industriosa; de um sistema que condenava o fariseu - esse exemplo fulgurante de boa cidadania - para um sistema que exalta o fariseu acima de todo outro tipo humano), ou então, repito, acham-se prósperos demais para serem cristãos".

Aldous Huxley 2

Idem: "O puritano era e é um perigo social, um flagelo público e privado da espécie mais odiosa".

Werner Herzog

Achei um velho recorte de jornal (Folha da Tarde, 8 de agosto de 1980) com uma entrevista do Herzog, que estava no Brasil pra filmar Fitzcarraldo. Tinha um trechinho sublinhado:

- Qual a sua missão como cineasta?

- Retratar pesadelos, as sensações profundas que estão no interior de cada um de nós, que não têm nome, que não conhecemos, que não vemos. De lidar com o medo, articulá-lo através de imagens.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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