A corrupção e o suicídio

Luis Fernando Verissimo, ao comparar a Lava Jato com a Mãos Limpas, disse que a Mãos Limpas levou vários corruptos ao suicídio e a Lava Jato, apenas o reitor Luiz Carlos Cancellier, um inocente. Isso diz muito do Bananão. Os sinhozinhos e os capatazes, com um treino de séculos de reinado sobre a senzala, ficaram com o couro grosso, coisa digna de velhos rinocerontes. Empatia, vergonha, honra e demais frescuras caem bem e são aplaudidas nas novelas da Globo, onde o mundo é embalado por uma camada de açúcar de confeiteiro.

Aqui fora o bicho pega. Ou você consegue imaginar algum acusado, entre políticos e empresários, se matando? Imaginar eu consigo, mas a coisa fica mais inverossímil que a transformação do Incrível Hulk - ou dá pra acreditar que um cara, ao ficar repentinamente umas dez vezes maior, tem toda a roupa rasgada menos a parte da calça que cobre o pingolim e a bunda? Pois é, logo o que uma boa porção da plateia quer saber se cresceu na mesma proporção.

O que vem a seguir não tem nada a ver com a realidade. É produto de delírios causados por uma manhã de sol na moleira. Pra começo de conversa, não tenho a menor ideia de quem sejam Roberto Yourself e Serguei, el Mourisco. Nem o que seja o Caso Baner do Estado e muito menos a Operação Uma Mão Lava a Outra.

Yourself foi preso no Caso Baner do Estado. Não lembra? É aquele em que jacus ou aracuãs, das mais variadas plumagens e com os mais variados envolvimentos na privataria, mandaram pra paraísos fiscais uma graninha equivalente a umas dez Uma Mão Lava a Outra. O juiz era o paladino anticorrupção Serguei, el Mourisco.

Yourself: Que vergonha. Agora que o senhor me mostrou as provas, descubro que sou um criminoso. Pensava que era apenas um empreendedor se beneficiando do mercado livre, ou melhor, se beneficiando das migalhas que caem da mesa do mercado livre, um pequeno mandalete dos capatazes da casa grande. Acho que vou me matar.

Mourisco: Não, não, meu caro mandalete. Vamos conversar.

Yourself: Serei massacrado pela imprensa. Com foto e tudo.

Mourisco: Seja bobo. Pra parecer livre e imparcial, a imprensa vai fazer uma ondinha, mas em seguida baixará o silêncio de sempre.

Yourself: Você acha?

Mourisco: Quem escreve na imprensa? Teus parceiros, mandaletes de capatazes. De quem é a impr?

Yourself: Sim, sim, mas vão rir às minhas custas.

Mourisco: Mas você é engraçado, queria o quê? Vamos fazer o seguinte, me entrega o esquema e mando soltar você.

Yourself: Aí nem os capatazes vão achar mais graça.

Mourisco: Claro, claro. Mas há capatazes e capatazes. Conheço todos, pela cor do pelo e pela marca na picanha.

 Yourself: Quer dizer que dependendo do capataz, não vem ao caso?

Mourisco: Às vezes é necessário um pequeno sacrifício, um boi magro pras piranhas, me entende?

Yourself: Mesmo assim, sei não. Quem sabe eu entrego outros doleiros? Pra continuar engraçado pra todos.

Mourisco: Taí uma boa ideia. Assim, quando você for solto, nem terá concorrência.

Yourself: E dizer que eu queria me matar.

Mourisco: A vida não é bela?

Sim, a vida é bela: o Caso Baner do Estado foi encerrado por Serguei, el Mourisco por falta de provas. As provas que apareceram só deram pra encanar uns doleiros de segunda classe. Os demais envolvidos não mereceram nem convicções. Milagrosamente não havia nem um petralha, gente que nasce corrupta, como pode-se ver em qualquer maternidade.

Passaram-se os anos e o Yourself caiu na Operação Uma Mão Lava a Outra.

Yourself: Agora sim me mato. Pego duas vezes na bandalheira, não tenho mais saída.

Mourisco: Como não?

Yourself: Ué, a lei não proíbe duas delações premiadas? Eu não tinha me comprometido a não cometer mais crimes? Só me resta o suicídio.

Mourisco: Calma. Como a situação é excepcional, posso abrir uma exceção.

Yourself: Como abrir uma exceção? Não é sempre assim, no Bananão?

Mourisco: Assim como? Tá me estranhando?

Yourself: Uma lei pra quem usa chinelo de dedos e outra pra quem usa sapatos italianos. Como estou a meio caminho?

Mourisco: Não, senhor! A lei é uma só.

Yourself: Que cabeça a minha. A interpretação é que varia. Sou uma besta mesmo. Depois de uma mancada dessas, com que cara vou olhar minha mulher, meus filhos, meus vizinhos?

Mourisco: Calma, calma. Quer uma água com açúcar?

Yourself: Com que cara vou olhar minha amante, meus cavalos, meus cachorros? Me diga.

Mourisco: Vamos, beba. É açúcar orgânico. Eu não conto pra ninguém. Tá bem?

Yourself: Como o senhor é bondoso.

Mourisco: Voltando à Operação Uma Mão Lava a Outra. Você pega uma caninha básica, depois prisão domiciliar na tua mansão com tornozeleira eletrônica customizada?

Yourself: Não, é humilhante demais.

Mourisco: Não seja molenga. Parece o Geddel. Vamos, me entrega uns aí e?

Yourself: Como?! Além de corrupto vão me chamar de dedo-duro.

Mourisco: Quem sabe acertamos uma percentagem sobre as propinas que recuperarmos? Aí você pode olhar na cara da tua mulher e dizer que levou vantagem. Pode até dizer que fez o juiz Mourisco, ou toda a força-tarefa, de bobo.

Yourself: Não tinha pensado nisso.

Mourisco: Viu, a vida é bela. É só uma questão de ângulo.

Yourself: Mas e aquelas minhas contas pelaí?

Mourisco: Pelaí?

Yourself: Sabe, ilhas paradisíacas?

Mourisco: Que contas? Não vi nenhuma.

Yourself: Puxa, que nervosismo o meu. Digo até coisas sem sentido.

Mourisco: E então?

Yourself: Negócio fechado.

Outra cena que não aconteceu, mais falsa ainda: Mourisco chega em casa podre de cansado, após uma maratona de cognições sumárias e de premiações de delatores. Não quer nem papo com a patroa. De madrugada, acorda na maior angústia.

Mourisco: Eu não poderia condenar ninguém se não premiasse dezenas e dezenas de ladrões milionários, fora esses mesmos ladrões milionários soterrados por provas. Bom, condenar eu condeno a todos, mas, poxa, alguém precisa ficar preso depois, se não qual é a graça? Sim, o número dos que solto é muito maior do que os que mantenho no xilindró. O fato de não haver provas convincentes pra manter presos os que mantenho presos é um acidente que pode acontecer com qualquer um. É dura a vida de paladino anticorrupção. Mas também é preciso ver que um petralha preso vale por vinte ou trinta dos outros. Um petralha preso justifica até o Temer e sua quadrilha levada ao poder pra garantir o perfeito funcionamento das instituições e não atrapalhar o sono dos sinhozinhos. É isso, não tenho por que me preocupar. Afinal, a vida é bela, vista daqui de cima.

 

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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