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      Quando trocou o Grêmio pelo Palmeiras, Luiz Felipe Scolari foi recebido pela imprensa de São Paulo com um misto de expectativa e desconfiança. Apesar …

      Quando trocou o Grêmio pelo Palmeiras, Luiz Felipe Scolari foi recebido pela imprensa de São Paulo com um misto de expectativa e desconfiança. Apesar de exibir um currículo vencedor, o havia obtido dirigindo um time "lá do extremo sul do país". Os currículos de Grêmio e Inter parecem não desobrigá-los de provar sempre mais. A fama de equipes violentas, especialmente no caso do Grêmio, se sobrepõe às estatísticas. Na célebre conquista da Copa do Brasil do ano passado, quando deu um banho de bola no Corinthians em sua própria casa, os números mostraram que o time paulista bateu bem mais. Não foi um fato isolado. Em confrontos igualmente notórios, como os ocorridos contra o Palmeiras em meados dos anos 90, as planilhas muitas vezes desmentiram os críticos do futebol "violento" do Grêmio. Não bastava.
      Felipão era o homem do futebol truculento. Não à toa, a mídia o tratava por Scolari, o uso do sobrenome a manter distância segura de seus questionados métodos. Tradicionalmente, a imprensa usa o sobrenome no caso do personagem masculino, exceto quando ele é bastante conhecido de outra forma. Chamá-lo de Scolari de certa forma desqualificava o Felipão. Sutilezas, digamos. Poucos técnicos enfrentaram tanta pressão, exercida diretamente ou por meio de câmeras e microfones escondidos destinados a obter uma "confissão".
      Quando percebeu, Felipão estava numa terra de santos, na qual todos os treinadores condenavam a violência, os jogadores eram incapazes de cometer uma maldade contra o adversário e repórteres e comentaristas ficavam chocados a cada pontapé. O vitorioso técnico gaúcho inventara a porrada no futebol. Foi preciso levar o Palmeiras a vários títulos para que a imprensa prestasse atenção aos scouts e concluísse que não era bem assim. Scolari virara Luiz Felipe. Com o fracasso de colegas engravatados e bons de retórica, se converteu definitivamente em Felipão e ganhou uma chance na seleção brasileira.
      A imprensa esportiva do Rio Grande do Sul costuma se orgulhar do suposto fato de ser a mais exigente do país, bem diferente daquele "oba-oba" do Rio de Janeiro, por exemplo. A crítica do Rio não é menos exigente, simplesmente adota uma postura diferente, de acordo com as características da cidade e de seu povo. Beber um chopinho não é falta grave, mesmo para um jogador. Tampouco praticar futevôlei à beira da praia ou comparecer a um evento social significam irresponsabilidade. Não quer dizer que tudo seja liberado, Romário que o diga, tantas vezes já teve o filme queimado por atitudes excessivamente liberais para um desportista. Mas o Rio é uma cidade bem mais social do que Porto Alegre, ninguém duvida. A paisagem, a praia, a tradição colonial, a condição de ex-capital, tudo contribui para torná-la uma cidade cosmopolita. Não é o caso da capital paulista.
      Jogadores e treinadores que saíram do Sul para trabalhar em São Paulo sabem disso. A crítica do Rio Grande não é mais exigente, talvez pegue no pé de uma forma diferente. Atletas devem ter vida regrada, isso é óbvio. Ficar em boates até as cinco da manhã ou beber com freqüência deixam qualquer um cansado, mas é muito mais fácil administrar uma ressaca em frente ao computador do que num campo de futebol. Tanto gaúchos quanto cariocas tem lá suas razões. São Paulo não possui as praias nem o espírito do carioca. Apesar do tamanho, não se comporta exatamente como uma Nova York do Terceiro Mundo. Do alto de seu gigantismo e importância na cena brasileira, se permite ser menos provincial do que outras capitais, mas nem tanto. A derrota para o Grêmio na Copa do Brasil foi seguida de intrigas, desmantelamento do time do Corinthians, excomunhão de Marcelinho Carioca e etc. Não seria diferente em Porto Alegre. Duvido de que fosse diferente no Rio.
      Certa apenas é a maior exigência de quem vem de fora do emblematicamente chamado "eixo Rio-São Paulo" ou, pior, "centro do país". Embora seja mesmo o centro sob o ponto de vista econômico e cultural, a expressão, muitas vezes, embute um preconceito. Felipão ainda luta para se livrar dele. Para chegar à Copa prestigiado, no bom sentido, terá de driblar as críticas de figurões da mídia acostumados a decidir o que serve ou não ao futebol brasileiro.
      No último domingo, a ESPN exibiu uma entrevista com o técnico do Grêmio. Elegante, cavalheiro, de fala mansa, bem articulado e seguro do que diz, Tite encantou a todos os entrevistadores. É o queiridinho da hora. Não é por acaso que o programa se chama Bola da Vez. Mesmo assim, surgiu a questão inevitável. Para crescer profissionalmente e um dia chegar, quem sabe, à Seleção, lembrou alguém, terá de dirigir algum grande clube do "centro do país". Até porque, acrescentou outro, "a crítica do Rio Grande do Sul não é tão exigente quanto a de São Paulo".
Dedicado a Ruy Carlos Ostermann
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Autor
 Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha, Dona Deusa e seus Arredores Escandalosos e da ficção juvenil Eliakan e a Desordem dos Sete Mundos.

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