A lista de ano novo

Descendo a rua da Praia, só quem viu, que pode contar. De saia branca rendada, no caminho diário para a redação, me peguei pensando …

Descendo a rua da Praia, só quem viu, que pode contar. De saia branca rendada, no caminho diário para a redação, me peguei pensando nos tantos rostos que cruzaram a minha vida em 2005. Os anônimos que marcaram cada passo da minha desesperança. Passei pelo homem manco que pede dinheiro e lembrei quantas vezes eu desviei meu olhar dele com vergonha de nada ter para depositar na sua caixinha de esmola surrada. Encontrei com a florista na esquina e comprei, novamente, uma gérbera amarela para colocar no vaso ao lado do porta-retrato do meu irmão que faleceu.


Covarde, cruzei a rua para desviar dos meninos que se aglomeravam defronte a agência bancária onde, semanalmente, eu brigo com o caixa eletrônico à procura de mais dinheiro do que meu saldo permite. Todas as vezes fechei meus olhos para a miséria dos meninos. Não seria diferente agora que o ano se encerra. Como quem deseja e acredita que pode zerar seus  "pequenos" pecados diários, mais uma vez fui guiada para a Igreja do Rosário, templo religioso que me abrigou tantas vezes este ano para ouvir as minhas preces e acolher a minha bíblia de pedidos.


De joelhos dobrados, ergui os olhos para o teto deslumbrante da igreja e pedi piedade. Sim, senhor, muita piedade. Para essa gente careta e covarde, como eu. Me esquivando dos meninos de rua defronte ao banco. Fingindo aquilo que não sou. Foi quando um novo anônimo sentou num banco perto para perturbar a minha lógica irracional. Ele me olhava tanto que me deu um certo medo. Sabem como é. O centro anda muito perigoso. Não se pode confiar em mais ninguém. A Igreja do Rosário, por volta das 13h30min, não tem tanto movimento. Vai ver que ladrão não tá respeitando nem mais igreja. Não é de duvidar.


Ao terminar minhas preces e fazer o sinal da cruz, ouvi passos atrás do meu caminho, que fazia o trajeto da porta da rua da igreja. Trêmula de medo, pensei: "seja o que Deus quiser". Resolvi arriscar e virar para olhar quem me seguia com tanto vigor que chegava a fazer um barulho de madeira batendo no chão. Ninguém mais do que o manco anônimo que acompanhado de sua bengala também tem todo o direito de rezar e me olhava, simplesmente, porque me reconhecia, das inúmeras vezes que compartilhamos, intimamente, e sem saber, da vergonha de pedir esmola e de não ter dinheiro para conceder a esmola.


Em questão de minutos, passou pela minha cabeça, como num filme "vale a pena ver de novo", todos os anônimos que fizeram a minha caminhada rotineira para o jornal mais enriquecedora este ano. Depois, numa retrospectiva, lembrei de cada vez que um amigo me estendeu a mão e que chorei no seu ombro convulsivamente. Sem esforço nenhum, recordei de quase todas as pautas que cumpri e elegi aquelas que mais me fizeram crescer, como a do menino corajoso que se banhava nas águas sujas da prainha do Gasômetro; dos alagados de Alvorada espremidos em um ginásio do município; do olhar faceiro das crianças ao conhecer o circo pela primeira vez.


Fechei a porta da igreja e entreguei a gérbera para o meu conhecido manco, que aceitou a cortesia sem entender muito bem. Terminei a minha cruzada diária pela rua da Praia com a sensação estranha de que 2005 foi insuficiente para eu amenizar minha dívida social. Cruzei a Praça da Alfândega aspirando sua mistura de cheiros com a certeza de que continuo rica, uma vez que acumulo amigos na minha agenda. Pisei no centenário elevador do Correio do Povo com a respiração ofegante de fugir dos dias finais deste ano.


Enquanto aguardava a distribuição das pautas, decidi começar 2006 com uma nova proposta de vida. Virar a página para as tradições de virada do ano, simpatias e promessas inviáveis. Não por ser cética. Para iniciar o novo ano de forma diferente. Ao contrário de elencar as coisas que devo priorizar (início da dieta, fazer exercícios físicos, procurar mais os amigos, etc?.), optei por listar o que não deve, de jeito nenhum, fazer parte da minha vida em 2006. Devo confessar que a lista ficou interminável, mas pode ser que evite constrangimentos como o da Igreja do Rosário.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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