A pauta da Sexta-Feira Santa

Por Flávio Dutra

Repórter de plantão na Sexta-feira Santa enfrenta uma pauta obrigatória em Porto Alegre: a cobertura da encenação da Paixão de Cristo no Morro da Cruz, também conhecida como subida ou procissão do Morro da Cruz. O evento ocorre desde 1960, criado pelo padre Ângelo Costa, já falecido, e cresce a cada ano, reunindo preferencialmente atores da comunidade. Lá no final da década de 80 do século passado este que vos fala era repórter de geral da Zero Hora, estava de plantão na Sexta-feira Santa e, claro, foi escalado para acompanhar a encenação.

Lembro bem que era um dia quente no final de março e para escapar das obviedades das coberturas tradicionais, decidi escolher dois ou três personagens interpretados por atores locais para, por meio deles, montar a minha matéria. Um dos personagens era balconista de uma ferragem e intérprete do soldado romano que passava toda a encenação surrando, com uma espécie de relho, um dos ladrões, que na vida real era motorista de táxi.

É importante esclarecer que a encenação reproduz a Via Sacra e suas 14 estações ou etapas do suplício de Cristo naquela sexta-feira, há mais de dois mil anos. Só que alguns atores imprimem demasiado realismo a suas interpretações e era caso do soldado romano que, volta e meia, pesava a mão contra o pobre e, talvez, bom ladrão. O infeliz olhava enfurecido para seu algoz, mas nada podia fazer durante a celebração religiosa, mesmo que o sacana legionário revelasse perversa satisfação em maltratar o companheiro de elenco. Sei lá se não deu o troco após o evento. O soldadinho, um sujeito atarracado e malvado, bem que merecia.

O mais inusitado ainda estava para acontecer naquela encenação do século passado. O gran finale seria a ascensão de Cristo, a partir da capelinha existente no platô do Morro da Cruz e onde ocorria o final da procissão. O espetáculo no fim da tarde previa jogo de luzes, uma trilha épica e aqueles fumacinhas de shows, que acompanhariam a subida do filho de Deus feito Homem aos céus. Um engenhoso sistema mecânico elevava o ator, com suas vestes brancas, enquanto ele recitava lições de religiosidade. O ator já era o ex-vereador Aldacir Oliboni, considerado a réplica moderna do Cristo, de acordo como mostram as ilustrações que conhecemos.

Pois bem, lá estava o Cristo-Oliboni exortando os fiéis quando, à esquerda do platô, começou uma movimentação frenética. "É ele, é ele sim!", repercutia a massa. Vocês estão autorizados a pensar que era o próprio Cristo redivivo comparecendo ao seu velório, mas na verdade era quase isso, guardadas as proporções e o período histórico. Quem surgia triunfalmente era Sérgio Zambiasi no auge da sua popularidade. O Zamba foi cercado e festejado pela multidão, enquanto Cristo subia ao encontro do Pai, lentamente e quase de forma incógnita.

Oliboni ainda tentou atrair a atenção dos infiéis, gritando palavras de ordem pelo sistema de som: "Cristo está aqui! Cristo está aqui! Agora é o momento glorioso da subida aos céus. Venham, venham, é aqui que está o Filho do Senhor! Demos glórias ao Senhor!", apelava o bom Oliboni. Inúteis apelos. A massa queria mesmo era confraternizar - e fazer pedidos - a quem mais tinha a oferecer naquele momento. Entre os consolos espirituais que Oliboni inspirava e os materiais que Zambiasi poderia proporcionar a escolha do povo pecou pelo pragmatismo, mesmo na Semana Santa.

Confesso que fiquei penalizado com a situação do Oliboni, supliciado durante toda a subida do morro e justo no momento da sua consagração como Cristo e ator o público o abandonava daquela forma, trocando-o por uma situação tão mundana. De novo, mais de dois mil anos depois, a história se repetia e o povo renegava Jesus Cristo. Insensível público, mas depois fiquei pensando que fatos como o que presenciei talvez expliquem porque Sérgio Zambiasi chegou a senador e Oliboni, mesmo sendo Cristo por um dia, todos os anos, só conseguiu assumir como deputado estadual, ainda assim vindo da suplência. Mas aí já é outra história, nada a ver com a Semana Santa.

Uma ótima Páscoa a todos. Que o coelhinho seja mais generoso que a massa que renegou Cristo-Oliboni.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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