A profecia errada do chato do querubim

Por Márcia Martins

Quando ele nasceu, em 19 de junho de 1944, um anjo safado, o chato do querubim, decretou que ele estava predestinado a ser errado assim. E hoje, 22 de maio de 2019, uma quarta-feira, 75 anos depois, o Brasil inteiro e a comunidade literária internacional percebem o erro grosseiro e gritante da profecia angelical. Francisco Buarque de Hollanda, que já era patrimônio nacional, ídolo de todos e todas, ícone da Música Popular Brasileira (MPB), um compositor exemplar, o letrista do sexo masculino que melhor retrata a alma feminina, o escritor eficiente e certeiro, ganhou o Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa.

O carioca de olhos cor de ardósia (pedra muito usada em decoração de ambientes) foi escolhido de forma unânime pelo conjunto de sua obra, o que lhe assegurou, às vésperas de completar os seus 75 anos (sim, ele é geminiano), o prêmio mais cobiçado dos países da língua portuguesa. O júri, que esteve reunido ontem, no Rio de Janeiro, na sede da Biblioteca Nacional, resumiu em uma nota: "Seu trabalho atravessou fronteiras e mantém-se como uma referência fundamental da cultura do mundo contemporâneo". O vencedor da 31ª edição do prêmio é o 13° brasileiro a ganhar tal honraria, mas o que tem sido destacado, desde o anúncio, é ser alguém ligado ao mundo musical.

Só quem é capaz de amar daquela vez como se fosse a última, beijar a sua mulher como se fosse a última e cada filho seu como se fosse o único para cativar um júri tão exigente. Pois Chico Buarque de Hollanda atravessou o País inteiro com seu passo tímido, seu jeito de bom moço, seu sorriso desajeitado para conquistar o mundo. Chico não ficou na janela com seus olhos tristes vendo a dor de todo esse mundo e cantou mil versos para agradar todos e todas e explicar o motivo de ser escolhido para ganhar o prêmio. Ele encontrou um lugar, que encantou todos, uma espécie de bazar onde os sonhos extraviados vão parar, entre escadas que fogem dos pés e relógios que rodam para trás.

Ao contrário de muitos da MPB, com carreira passageira, com posicionamentos equivocados, com espaços insignificantes na trajetória musical, Chico Buarque nunca ficou à toa na vida esperando a banda passar. Mas teve a nobreza de ver a nossa gente sofrida despedir-se da dor, de amparar a moça triste que vivia calada, de dar passagem para a namorada que contava as estrelas. Por isso, ele engrossou a lista dos brasileiros já premiados: João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Antonio Cândido, Autran Dourado, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, João Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar, Dalton Trevisan, Alberto da Costa e Silva e Raduan Nassar.

Quem me lê com frequência ou ainda que esporadicamente, sabe da minha verdadeira paixão, idolatria, amor de fã e de mulher pelo Chico. Já escrevi colunas aqui mesmo neste portal sobre minha adoração pelo Chico, em diferentes ocasiões. Jamais escondi e até faço questão de espalhar que sou totalmente enlouquecida pelas letras do homem dos olhos de cor de ardósia e que depois do Grêmio sou torcedora do Politheama, time de futebol amador formado pelo Chico onde jogam os seus grandes amigos. E podem me chamar de doida varrida, mas juro por todos os santos que, se o Chico me pedisse em casamento, seria o único homem a me fazer cometer tal loucura.

Por isso, na terça-feira, um pouco antes das 20h30, ao saber da notícia do prêmio, eu não me contive. Chorei muito de felicidade. Dei pulos pelo apartamento (o cão Quincas Fernando Martins achou a movimentação estranha e latiu muito). Fiquei mudando os canais da televisão para ver como os jornais anunciavam a concessão do prêmio. Mais tarde, coloquei no som os CDs dele que mais gosto (como se fosse uma escolha fácil). E fiquei muito, mas muito feliz. Como se fosse alguém da minha família. Como se fosse alguém muito íntimo. Como se fosse alguém a quem eu iria telefonar, logo em seguida, para cumprimentar pelo feito. Porque assim o Chico Buarque de Hollanda é e sempre foi para mim.

Mais do que um ídolo nacional. Mais do que um compositor excepcional. Mais do que o letrista que penetra com exatidão no universo feminino. Mais do que o compositor que sabe melhor descrever as dores e as alegrias da paixão. Mais do que o homem sempre posicionado e denunciando os momentos de chumbo vividos no Brasil. Mais do que meu caro amigo que vai levando de teimoso e de pirraça. Mais do que o terceiro que chegou sorrateiro e se instalou feito um posseiro dentro do meu coração. Mais do que o autor dos livros Leite Derramado, Budapeste, Estorvo, Benjamim e Irmão Alemão. Chico Buarque de Hollanda ainda é a o resto de esperança que tenho neste País. E que o Chico nos resgate.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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