A Rainha da Fronteira merece

Nunca canso de admirar e elogiar a potência que os festivais têm de catalisar as pessoas em torno da arte e da cultura. Aqui em Porto Alegre, a Feira do Livro acaba de cumprir sua tradicional missão de reunir multidões na Praça da Alfândega em volta de suas barracas - sempre uma bela festa, ainda que os números de vendas não tenham sido animadores. Graças à concentração de atrações e nomes em um lugar durante um tempo determinado, festivais, feiras, jornadas, mostras e ciclos conseguem atrair a atenção de um público nem sempre atento ou exposto às manifestações artísticas em questão em outros momentos - além de naturalmente convocarem o interesse da mídia. Muita gente que acompanha animada a programação do Porto Alegre Em Cena raramente vai ao teatro quando não tem festival, o POA Jazz Festival traz expoentes nacionais e estrangeiros do gênero para uma plateia que poucas oportunidades tem de ouvir esse tipo de música ao vivo na cidade, a Bienal do Mercosul exibe arte contemporânea para centenas de espectadores que nunca colocaram os pés dentro de um museu.

Várias cidades do interior gaúcho já descobriram essa força agregadora dos eventos e vêm já há algum tempo atenuando suas carências e lacunas específicas na área da cultura investindo nesse tipo de programação periódica - com maior ou menor sucesso em termos de engajamento da comunidade. São muitos os exemplos: o Festival Brasileiro de Música de Rua na Serra, a Jornada Nacional de Literatura em Passo Fundo, o Mississippi Delta Blues Festival em Caxias do Sul, o Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Canela, o Festival Internacional Sesc de Música em Pelotas. Acabei de voltar de Bagé, onde acompanhei como jurado de longas-metragens o 9º Festival Internacional de Cinema da Fronteira. A experiência foi gratificante: além da qualidade dos filmes exibidos e do convívio estimulante com convidados gaúchos e de outros lugares do Brasil, trouxe de lá uma impressão positiva e otimista quanto ao poder de despertar a mobilização de uma cidade em prol de uma iniciativa que incrementa o nível cultural e alimenta a autoestima.

Idealizado pelo diretor de cinema e produtor Zeca Brito - filho da terra entusiasmado e incansável defensor da cultura local, que capitaneia uma equipe de colaboradores igualmente apaixonada -, o Festival Internacional de Cinema da Fronteira caracteriza-se pela seleção de filmes representativos da nova produção brasileira, escolhendo títulos de viés mais autoral e não comercial e, em geral, de realizadores estreantes ou em começo de carreira. Essa coerência de curadoria empresta consistência ao festival gaúcho - que, mesmo ainda modestamente, segue os passos da inovadora Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Gerais. Neste ano, o evento que já recebeu nomes como a cantora Elza Soares e o decano da crítica cinematográfica brasileira Jean-Claude Bernardet voltou a ser realizado no Centro Histórico Vila de Santa Thereza - belíssimo local a sete quilômetros de Bagé, que recuperou alguns dos prédios de uma charqueada do início do século 20, como uma linda capela decorada com quadros do pintor Glênio Bianchetti retratando os Passos da Paixão de Cristo. Ali, em meio ao pampa, perto da fronteira com o Uruguai, o festival juntou durante cinco dias jovens, adultos, idosos e cachorros - sim, os cães também participam vivamente das atividades sociais bageenses -, interessados em desfrutar do convívio em torno do cinema.

Uma das razões dessa presença popular são as atividades como oficinas de cinema, sessões para escolas e mostras de filmes regionais promovidas pelo festival, que estendem para além do tempo de sua realização a presença da iniciativa cultural entre os locais. Nesta edição, os atores Fernando Alves Pinto e Zezita Matos - a Piedade da novela "Velho Chico" - ministraram em Bagé workshops de atuação gratuitos. Outro elo com a comunidade são as ações desenvolvidas em parcerias com universidades, especialmente a Universidade da Região da Campanha (Urcamp), que integram os estudantes por meio da produção de um cinejornal diário sobre o festival e da realização de debates.

Lá em Bagé, as pessoas não dizem "de nada" depois de um "muito obrigado": "merece" é a resposta graciosa e amável dos bageenses no trato cotidiano com os cidadãos. Ouvidos desacostumados como os meus estranham essa cordialidade à primeira escuta. Mas logo a gente se acostuma e já sai dizendo "obrigado" por qualquer coisa, só para ouvir a simpática réplica - gentileza gera gentileza, né? Pois os bageenses fazem muito bem em abraçar seu festival de cinema, que só vem crescendo - uma adesão, aliás, que deve ser ainda maior do poder público e da população a fim de elevar mais o alcance dessa iniciativa. A Rainha da Fronteira merece.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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