Almanaque

Sempre quis fazer um almanaque dos que me encantavam em criança, com desenhos e piadas, horóscopo, curiosidades científicas e conselhos sentimentais e agrícolas. Sabe, …

Sempre quis fazer um almanaque dos que me encantavam em criança, com desenhos e piadas, horóscopo, curiosidades científicas e conselhos sentimentais e agrícolas. Sabe, um livro pro sujeito ler no banheiro, no táxi, no ônibus, no avião, sem a exigência de colarinho engomado e olhares sepulcrais de erudição. Um livro pra ficar em consultório de dentistas pros pacientes que não gostam de revistas velhas com fotos de carnavais passados. Um livro pra ser lido na cama, antes de dormir, depois fica atirado por aí, as crianças pegam e desenham nas margens, riscam, arrancam folhas.
Queria um livro com a força mágica da notícia que a empregada lê no pedaço de jornal que veio enrolando os legumes que ela pôs na pia. Um livro tão fundamental pra nossa cultura como as palavras cruzadas, o que, francamente, é exigir muito. Então digamos os gibis do Incrível Hulk, cartas de leitores, frases de pára-choque de caminhão - mas com uma certa dor e alegria.
Um livro que falasse de tudo um pouco, matizado como um arco-íris, só que com as cores pintadas anarquicamente. Um livro como um bate-papo num bar, ao entardecer, quando é tão bonito e triste estar num bar, a espuma da cerveja se desintegrando silenciosa contra as bordas do copo como o mundo nas sombras, uma mulher bonita na rua nos resgatando um instante disso que não tem nome. Um livro que não acha absolutamente que brincadeira tem hora, ou que tem sim: todas. Um livro que não precisasse de orelha elogiosa, de prefácio explicativo, da recomendação do crítico prestigioso, com pensamentos sobre a vida, o amor e a morte que são esquecidos cinco minutos depois pela menina bobinha que os sublinhou.
Que achas do beijo?  
Essa pergunta, nos Questionários que respondíamos antigamente, era de uma importância tremenda. Não queríamos saber o sentido da vida, se o placar marcaria socialismo ou barbárie, ou por quem os sinos dobram. Não, não. O negócio era o que devíamos fazer numa noite de lua, numa tarde de chuva, se amávamos alguém e podíamos dar suas iniciais. A vida talvez fosse mais simples. Estávamos vivos, era o bastante, não? Como a vida não ia ter sentido, se se beijava?
Mas beijo de irmãos não valia, nem de pai, nem de mãe. De tia velha muito menos. Nos Questionários, queríamos saber do beijo na boca, o beijo de língua. Sim, queríamos saber de sacanagem.
O beijo de língua era a suprema aspiração de cada um de nós - depois de pegar na mão. O que mais poderia ser feito? Sim, havia histórias, insinuações obscuras, mas era isso: o beijo de língua era o fim. Depois do beijo de língua, a bomba de hidrogênio.
Como era deliciosa a inocência ou a falta de imaginação. O beijo de língua não era o fim, não. Era apenas o começo. Mas quantas e quantas festinhas de garagem seriam necessárias pra grande descoberta? E dizer que hoje passa tudo em horário nobre, na televisão.
O que achas do beijo? A pergunta nos foi feita quando não sabíamos o que responder. Agora que sabemos - com algumas exceções já históricas -, não importa mais. Agora nos perguntamos, nos perguntam pelo sentido da vida, a quanto anda o placar da barbárie e se os seios da moça são de nascença ou são de silicone. De novo não temos resposta. De novo, só palpites. Que coisa, seu!
Saboreando
Ouvir um amigo meu, mais conhecido como Cabeça, recontar e representar uma história talvez seja melhor do que pegar a primeira sessão de cinema da tarde de uma segunda-feira. Sempre nos encontramos de tardezinha, sempre por acaso, sempre perto de um boteco. Pedimos uma cerveja e nos informamos das novas quase com pressa, pra podermos nos dedicar às velhas como se deve: com calma, curtindo detalhes, ângulos. Às vezes comparamos as versões das histórias como se se tratasse de um vinho especial de safras diferentes.
Gosto muito da história da máquina de calcular.
- Vamos, Cabeça, conta aquela.
- Eu ia indo pela Rua da Praia numa tarde de primavera.
- Então os jacarandás estavam em flor?
- Quando encontrei o Sérgio. Ele usa barba aparadinha e cabelos sem um fio fora do lugar, camisa engomada e sapatos brilhantes. Um homem pra gente ver só de óculos escuro, não? Bom, ele estava apressado, mostrando no alto uma máquina de calcular. Me disse: aconteceu um problema. Pensei logo em dinheiro, pelo tom de urgência do Sérgio. Não, não, me disse. É a máquina. Estragou?, perguntei. Ele: não, a d.d.p. existente entre os bornes não é suficiente para incandescer os filamentos.
Embora eu saiba a resposta, continuo de boca aberta como da primeira vez e com a pergunta da primeira vez:
- Mas o que isso significa em língua de gente?
- As pilhas estavam fracas, por isso não apareciam os números no visor. Não é maravilhosa a engenharia eletrônica?
- Sim. E os jacarandás estavam em flor.
PS
Os textos da coluna de hoje faziam parte do Almanaque Candiru - Um livro de teses, tesinhas e tesões. Gastei um tempão nele, na minha tentativa desesperada de ser humorista. Eu tinha uns vinte e cinco ou vinte e seis anos. Um dia, de puro cansaço, desisti do livro. Como sempre nesses casos, joguei o original no lixo. É que escrevo como um criminoso na cena do crime: apagando todas as pistas. Apenas essas crônicas e uma que outra frase se salvaram, em algum momento de fraqueza. Relendo-as agora, não sei se sinto saudades.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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