Amiga do rei

Caro poeta Manuel Bandeira, peço desculpas pela apropriação indevida da sua criatividade, mas é que hoje acordei com a idéia fixa de transpor-me, de …

Caro poeta Manuel Bandeira, peço desculpas pela apropriação indevida da sua criatividade, mas é que hoje acordei com a idéia fixa de transpor-me, de "mala e cuia", para Pasárgada. Melhor dizendo, fui dormir com esta possibilidade. Juntar os meus trapinhos, tudo muito básico de prático, sucos de soja, água de coco, porque lá não deve existir esse inferno consumista chamado supermercado, discos, selecionar os livros mais importantes, alguns creminhos poderosos que prometem agir contra a ação do tempo, minha filha, Gabriela, obviamente, e comprar passagem em ônibus leito, direto, sem escalas para Pasárgada.


Nesse lugar imaginário, mas que sei deve mesmo ser verdade em algum canto escondido do planeta, eu seria bem mais do que amiga do rei, e não falo do Rei Roberto Carlos, Rei Pelé e outros brasileiros que ostentam o título. Esses reis seriam humilhados pela soberba, elegância, justiça e majestade do meu Rei, que governaria Pasárgada. Como amiga preferida de sua Realeza, poderia escolher a hora de dormir e acordar, melhor horário para as refeições, quem sentaria ao meu lado na mesa, os programas que passariam na televisão e, principalmente, quais os impostos que pagaria para melhorar a qualidade de vida em Pasárgada.  


Mas, o melhor de ser um dos raros habitantes de Pasárgada (sim, lá os moradores são bem selecionados por critérios ainda misteriosos) ainda está por vir. Nas terras calmas narradas no poema de Manuel Bandeira, eu teria, com certeza, o homem que escolheria. Só de pensar já me sobe um calafrio danado que tem outro nome (pois, pois, soltei meu lado lusitano). Imagine eu, "poderosa", "tipo se achando", apontar com o dedo indicador e dizer, com certo ar displicente: "Sei lá, hoje eu tou querendo o Marcelo Anthony, talvez o George Clooney, ou então o Gianechinni mesmo".


A minha transferência definitiva para Pasárgada não se deve ao fato de não ser feliz em Porto Alegre. Sou fã de carteirinha desta capital sorridente, que se abre com seu por-do-sol inesquecível para receber seus moradores. Adoro passear nos parques e praças da capital gaúcha, principalmente no Parcão. Não perco um domingo no Brique, mesmo que não compre nada e não tome chimarrão. Amo de paixão transitar pelas calçadas mal cuidadas e ser empurrada pelos pedestres sem educação. Gosto de caminhar sem pressa pelas ruas européias do Bomfim. Da Feira do Livro, do Grêmio, do Theatro São Pedro, da Rua da Ladeira e tal e tal.


Se a existência é uma aventura de tal modo inconseqüente, lá em Pasárgada suponho que se consiga fugir dos fatos chatos do cotidiano, que insistem em nos perseguir, aquela coisa que chamamos de destino. Fugir ou evitar os amigos (cumã???) inoportunos que não sabem a hora exata de telefonar, visitar, saber das fofocas; das notícias de que não encontraram ainda a cura do câncer, da Aids, de que ainda morrem muitos jornalistas no Iraque. Esquecer que a inflação está controlada mas existe um descontrole descontrolado no meu salário mensal. E inconseqüentemente, em Pasárgada, tudo seria um motivo para um novo amanhecer, um novo entardecer, um novo sonhar.


Malas prontas. Vou esperar Gabriela voltar do colégio e embarcamos hoje mesmo para Pasárgada, onde tudo é permitido. Um minutinho. Apitaram no porteiro eletrônico. Preciso me ausentar 30 segundos para ver do que se trata. Ufa, voltei. É uma carta registrada, vem lá de Pasárgada e assinada pelo Rei. Não estou gostando muito desse enredo que me parece destoante da poesia do Manuel Bandeira. O rei escreveu: "Querida Márcia. Notícias desagradáveis. Pasárgada foi invadida por estranhos seres metódicos, avarentos, ditadores que estão mudando tudo aqui na cidade. Não é aconselhável a sua mudança. Nem teria onde hospedá-la. Fui deposto".


Preciso acostumar-me à idéia de que Pasárgada foi mesmo um sonho, de que jamais a existência será de novo uma aventura, de tal modo inconseqüente, que Joana, a Louca da Espanha, vem a ser contraparente, da nora que nunca tive. Logo, de volta à dureza da realidade, com os horários estabelecidos, compromissos selados, encontros furtados, dinheiro contado, amizades esquecidas, pautas que não fecham, contas a pagar, lágrimas a derramar, feridas que não cicatrizam. Um dia ainda vou ser amiga do Rei.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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