Aos mestres, com carinho

Entram em cartaz nesta quinta-feira, 7, em Porto Alegre, dois filmes que celebram, cada um à sua maneira e com resultados bastantes distintos entre si, ícones do cinema internacional: "Lucky", estrelado pelo veterano ator Harry Dean Stanton e com participação do cineasta David Lynch, e "Em Busca de Fellini", cuja trama gira em torno da figura do "maestro" italiano. Em comum entre ambos os títulos, a despeito de suas evidentes diferenças, estão o fascínio pela sétima arte, o culto à mitologia do cinema autoral e a exaltação de visões de mundo que não se importam de destoarem do senso comum.

Vencedor do Prêmio do Júri Ecumênico deste ano do Festival de Locarno, na Suíça, "Lucky" marca a estreia na direção do ótimo ator norte-americano John Carroll Lynch - que, curiosamente, não tem nenhum parentesco com o realizador de clássicos como "Veludo Azul" (1986) e "Estrada Perdida" (1997). Uma das primeiras cenas de "Lucky" mostra um cágado andando no meio do deserto - mais tarde ficaremos sabendo que testemunhamos uma fuga. O quelônio é o animal de estimação do excêntrico almofadinha encarnado por David Lynch, um dos moradores de uma pequena e empoeirada cidade do oeste dos Estados Unidos. O protagonista do longa, porém, é Harry Dean Stanton, visto recentemente no elenco da terceira temporada de "Twin Peaks" - o seriado de David Lynch, aliás, foi a produção mais impressionante da televisão mundial neste ano. Morto no último dia 15 de setembro aos 91 anos, o ator é reverenciado do início ao fim de "Lucky": a primeira aparição do rosto de Stanton, surgindo em cena filmado de baixo para cima caminhando sob um límpido céu azul, é uma explícita referência ao andarilho sem rumo que viveu no cultuado "Paris, Texas" (1984), de Wim Wenders.

"Lucky" ("Sortudo", em inglês) mostra o dia a dia pacato do personagem-título, um nonagenário solitário que se veste como caubói e que, apesar da avançada idade, goza de boa forma e se vira muito bem sozinho. Um dia, porém, Lucky desmaia subitamente na cozinha, incidente que desperta no cético e, às vezes, turrão idoso a inevitável confrontação com a velhice e a morte. Em seus encontros e conversas com os locais no bar, no café e na rua, o ateu Lucky vai deparar com diferentes filosofias de vida, remoer oportunidades perdidas no passado e preparar-se para o desfecho existencial que se avizinha.

O diretor John Carroll Lynch mantém com segurança o tom agridoce da história, evitando o sentimentalismo e explorando ao máximo o talento dramático de Harry Dean Stanton, o jeitão meio desengonçado e quase cômico do ator e sua capacidade de comunicar-se utilizando apenas econômicas expressões faciais. Intuindo que seu filme seria uma espécie de réquiem ao intérprete, Carroll Lynch reuniu-o em cena com o ator Tom Skerritt, seu colega de elenco no clássico "Alien - O Oitavo Passageiro" (1979), e ainda pegou emprestados fatos da biografia do protagonista: Lucky nasceu no Kentucky e serviu na marinha como cozinheiro durante a II Guerra, da mesma forma que Stanton.

"Em Busca de Fellini" é também o primeiro longa-metragem de ficção de um realizador, o sul-africano Taron Lexton, que se inspirou em uma história real em sua ode excessivamente açucarada ao mestre Federico Fellini (1920 - 1993). Premiado neste ano no Festival de Ferrara, na Itália, como melhor filme, diretor e atriz, "Em Busca de Fellini" acompanha a jornada de uma jovem tímida e ingênua do meio-oeste norte-americano que, depois de descobrir os filmes do cineasta italiano, decide sair da barra da saia da mãe (Maria Bello) e ir a Roma conhecer o autor de obras-primas como "Noites de Cabíria" (1957) e "A Doce Vida" (1960). Quem interpreta a doce e quase tola Lucy é a bela atriz letã Ksenia Solo, do filme "Cisne Negro" (2010) e de séries como "Orphan Black".

Aos 20 anos, Lucy nunca beijou um garoto, não tem amigos e nunca trabalhou. Superprotegida e vivendo em um mundo de sonhos, a garota topa por acaso com um festival de filmes de Fellini em um cinema de Cleveland, onde foi à procura de emprego - e simplesmente desbunda. A moça consegue marcar por telefone um implausível encontro com Fellini e parte de um dia para o outro rumo à Itália, deixando em Ohio a mãe e a tia (Mary Lynn Rajskub) - personagens que são estereótipos do norte-americano desinformado e quase estúpido. Nessa aventura, Lucy vai topar com dezenas de figuras e referências retiradas de títulos do mestre - de "A Estrada da Vida" (1954) a "Casanova de Fellini" (1976), passando por "8½" (1963) e "Satyricon de Fellini" (1969). Essa fanfarra toda, porém, certamente constrangeria o homenageado: "Em Busca de Fellini" é uma releitura hollywoodiana e pasteurizada do universo do criador, que jamais consegue evocar na tela a peculiar mistura onírica de sublime e grotesco do italiano e que lança mão de cenários de cartão postal de cidades como a Verona de "Romeu e Julieta" e Veneza para emoldurar clichês românticos de paixão latina e pílulas de sabedoria de livro de autoajuda. Se não chega efetivamente a encontrar o que anuncia no título, ao menos "Em Busca de Fellini", como "Lucky", serve para nos lembrar que os grandes nomes do cinema continuam a nos iluminar mesmo depois que o projetor se apaga.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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