Bacia de cerejas

"...E a tristeza tem sempre uma esperança,

De um dia não ser mais triste, não."

(Vinicius de Moraes)

O poeta Mário de Andrade era um homem angustiado e agudo observador do implacável passar das horas, dos dias, do tempo. Não apreciava festas e nem conseguia entender porquê as pessoas se entregavam de corpo e alma às folias carnavalescas, esquecendo a vida real. Talvez tenha sido em uma triste Quarta-feira de Cinzas que o poeta concebeu esta joia de reflexão existencial:

"Contei meus anos e descobri que terei menos

tempo para viver daqui para a frente

do que já vivi até agora.

Tenho muito mais passado do que futuro.

Sinto-me como aquele menino que recebeu

uma bacia de cerejas...

As primeiras, ele chupou displicente, mas

percebendo que restavam poucas, agora rói o caroço."

***

Outro poeta, o austero - e amoroso - Carlos Drummond de Andrade, era igualmente íntimo do lado menos luminoso do cotidiano. Ele se perguntava a quem deveríamos cobrar as promessas de felicidade que nunca se concretizavam.

E o próprio poeta respondia:

"Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

não cantaremos o ódio, porque este não existe,

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos.

(...)

Cantaremos o medo da morte e o medo de

depois da morte.

Depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas."

Mas, como estes mesmos poetas nos indicaram, vamos seguindo em frente, vencendo o medo e superando a frustração por não alcançar a mítica felicidade prometida. E em certo ponto - antes ou agora - encontramos a certeza de que os risos e as festas, ao contrário dos contos da carochinha e dos musicais da Metro, não duram o tanto que gostaríamos que durassem. O que resta a fazer é voltar para a realidade das Quartas-Feiras de Cinzas e garimpar as pequenas felicidades que nos cabem, ou como definiu outro poeta, o inglês J.M Foster, os nossos Precious Remains of Happiness.

Eles estão ali, disfarçados de rotineiros, mas bem ao alcance de nossas vontades: um livro querido esquecido na gaveta, a rosa amarela que brotou entre urzes, um por de sol em terra estranha, o perfume fugaz de uma dama da noite, o sorriso do amigo que retorna.

***

Era uma vez um caríssimo colega, que ficou em alguma dobra do tempo. Desde muito, tento reencontrá-lo e perguntar o que aconteceu com um caderno de capa verde que ele sempre levava no bolso.

Ele tinha por hábito registrar naquele caderno tudo de bom que acontecia em sua vida. Dizia que eram anotações para um diário, que ele pretendia um dia escrever: o Livro de Alegrias. Quando os desencontros do dia-a-dia o oprimiam por demais, ele tomava de seu caderno verde, sentava na pracinha em frente ao ginásio e repassava alegrias seu estoque de alegrias vividas.

Passado algum tempo, meu colega fechava o caderno e voltava renovado para casa com um sorriso pegado no rosto. Quando eu quis saber como se chamava o caderno, ele não respondeu. Mas tenho certeza que era sua bacia de cerejas.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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