Camarote do inferno

Não costumo repetir assuntos. Afinal, o dia-a-dia é tão fértil e sempre nos reserva momentos surpreendentes e inesperados. Mas não posso me furtar de …

Não costumo repetir assuntos. Afinal, o dia-a-dia é tão fértil e sempre nos reserva momentos surpreendentes e inesperados. Mas não posso me furtar de lhes contar as novidades. Mesmo que para isso tenha que recorrer a outra coluna e dizer que me enganei, errei, estava equivocada. Tudo bem. Errar é humano, ok? A sucursal do inferno não é aquele shopping lotado no sábado de dezembro, antes do Natal, com toda a torcida do Grêmio e do Inter atrás das melhores ofertas. Comparado ao canteiro de obras que se transformou os fundos do meu apartamento, sem data marcada para o término da barulheira, aquele cenário descrito como sucursal da casa do "coisa ruim" é a ante-sala do paraíso.


Imaginem alguém despertar às 7h30min com a sensação de que uma retroescavadeira está levantando a cama e as paredes todas do imóvel parecem que vão ruir. Visualizem, com tons coloridos, um varal cheio de roupas recém-lavadas, tomado por pó, de assalto, sendo necessário retornar tudo para a máquina de lavar. Depois, concentrem-se e pensem que alguém precisa utilizar equipamentos virtuais, coisas básicas do mundo tecnológico, como um computador com Internet e banda larga, mas que isso não é possível porque o fio da operadora e coisa e tal foi cortado errado por alguém da obra da sucursal do inferno.


Uma rua supostamente calma, localizada em um bairro sazonalmente tranqüilo nesta época, sem o ruído ensurdecedor das buzinas reclamando a saída dos filhos do colégio, está abrigando, da noite para o dia, máquinas, operários, engenheiros, arquitetos, pó, barulho, incomodação e, principalmente, a certeza de que a obra demorará mais do que o previsto. Sem falar no trânsito, todo desviado para a via de pequeno porte. E os edifícios, situados na rua de característica residencial, abrigam moradores que rezam pela chegada da noite, quando o tremor de terra tem um fim temporário.


A utilização das dependências do colégio, responsável pelas obras, para as provas do vestibular da Ufrgs inverteu um pouco a rotina das reformas nos fundos dos meus aposentos (que chique). Vestibulando precisa de sossego e tranqüilidade para fazer um bom exame. Então, no período da manhã, os operários estão descansando para que os futuros universitários possam pensar melhor. Mas, às 12h30min, é aconselhável que todos abandonem suas casas, porque é preciso recuperar o tempo perdido e as máquinas são ligadas e começam a operar e não cessam mais durante a noite. E, pasmem, são capazes de desligar o ar condicionado e qualquer outro aparelho "ventilante", como ocorreu noite passada.


Como defensora da modernidade, não posso ser contrária à obra, que vai melhorar o fluxo de veículos, qualificar o trânsito, facilitar o atravessar dos alunos, e uma lista de motivos que sempre justificam as reformas viárias. A mãe da aluna que irá usufruir os benefícios da futura passarela revolucionária e tudo o mais também não deve reclamar.


Mas a moradora entende que tem alguns direitos adquiridos. E protesta sim. Não comprou ingresso para a sucursal do inferno. Não fez, ainda, por merecer lugar ao lado do satanás. Não foi consultada. Não deu opinião. Não sabia que o ano começaria com o estremecer das máquinas na sua cabeça. E nem que ficaria sem banda larga para ler os jornais e revistas pela Internet, exercício exigido pela sua profissão.


Até ser totalmente nocauteada pela obra na minha rua com pedrinhas de brilhante, era uma daquelas que adorava Porto Alegre nas férias de janeiro e fevereiro, justamente pela paz que a cidade transmitia com a fuga dos seus moradores mais afoitos para seus locais de veraneio. Sem fila no supermercado, nas agências bancárias, poucos passageiros nos ônibus, uma Rua da Praia sem praia e sem tanto atropelo, um shopping com menos consumidor, um cineminha no sábado à tarde com a filha na maior serenidade. Com a calma dos mortais. Sem caráter de urgência, que isso a gente carrega o ano todo. Perceberam a maldade? Usei o verbo adorar no passado.


Não considero Porto Alegre o melhor lugar para se viver nos meses iniciais do ano. Não acho tão legal assim não ter que enfrentar filas e burburinho em todo o local. Um pouco de movimento até que é bom. Quem sabe aquela loucura das areias escaldantes e lotadas das praias do litoral norte? Ou pegar os trechos não duplicados da 101 para encontrar toda a gauchada em Santa Catarina? E nada melhor que aqueles quilômetros em que não se muda o câmbio do carro na freeway? Tudo. Menos, o camarote do inferno, com direito ao assento do lado do próprio Diabo, ouvindo o barulho das obras.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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