Casanova perdido na biblioteca

Meu Carnaval deste ano foi uma folia: desmontei a biblioteca pra uns consertos e pintura. Recomendo. Se a gente jejuar, então, fica perfeito.

Me esforcei pra empilhar os livros em ordem, em outra peça, mas quem disse que deu certo? Parece que nesse meio tempo alguns se misturaram e, pior, se multiplicaram - ou as estantes perderam prateleiras. Encurralado, tomei uma decisão radical: me desfazer do que não coubesse.

Desse modo bailaram 54 livros e uma enciclopédia de arte, último indício do pintor frustrado que eu sou. Foi pouco. Ano passado despachei 330. Não fui mais longe porque tinha de pôr os livros em sacolas e levar na biblioteca municipal, pra não ficar com a sensação de quem desova corpos em terrenos baldios.

Abre parênteses. Borges recebia muitos livros mandados por escritores. A mãe dele achava falta de educação ignorá-los e escrevia uma cartinha de agradecimento que Borges obedientemente assinava. Um dia ele botou um monte de livros num saco e saiu pela rua. Quando ninguém via, jogou o saco na entrada de um edifício. Em pouco tempo apareceu um rapaz com o saco, achando que Borges o tinha perdido. Borges teve de agradecer e dar uma gorjeta. Então Bioy Casares disse a Borges que antes de se desfazer dos livros, ele devia arrancar a página com o autógrafo. Fechar parênteses.

Acho bom a gente se desfazer periodicamente dos livros que achou ruim, que não pretende reler ou que começam a cheirar mal. Como não quero impressionar ninguém com uma biblioteca de trinta mil volumes, a minha permanece há anos numa dimensão que me parece humana, uns dois mil volumes.

O que guardo com zelo são alguns livros de estimação, digamos. Outros que podem servir pra pesquisa. Os demais são os que ainda não li, mas não perdi a esperança de ler, e os que releio de tanto em tanto.

Na hora de botar os livros no lugar, descobri uma biografia do Casanova, de J. Rives Childs, numa edição de 1992 da L&PM. Eu não sabia que tinha, mas com certeza fui eu que comprei - depois do filme do Fellini, há milênios, fiquei curioso com o personagem. O interessante é que uns dias antes havia topado com um texto de Juan Villoro sobre Casanova, o que me levou a procurar na rede o Minha vida. Achei uma tradução espanhola em três volumes, com os episódios mais interessantes. Li uns trechos, que me pareceram divertidinhos, mas nada mais que isso. Adeus desejo de conferir os 12 volumes integrais.

Ainda no clima, dei uma folhada na biografia. O primeiro parágrafo me fisgou: "Jacques Casanova, uma das mais prodigiosas figuras do século dezoito, nasceu em Veneza em 2 de abril de 1725, destacando-se em uma longa linhagem de aventureiros, escritores e  condottiere italianos. Duas personalidades mundiais nasceram na cidade das lagunas: Marco Polo e Casanova. Mas se pode procurar em vão o nome deste último em um guia de Veneza; nem o menor monumento a ele será encontrado. Como observou Frenzi: 'A má reputação de Casanova deve-se em grande parte à sinceridade de suas confissões', o que significa dizer que nada é tão difícil de digerir quanto a verdade".

Dia desses falo da minha leitura.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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